No reino da 'trafigata': como o tráfico de drogas tirou a paz de uma cidade da Grande Curitiba

Camila Marodin, a 'trafigata de Curitiba', foi alvo de atentado na porta de sua residência Foto: Reprodução

Encoberta pelo machismo que a fazia passar despercebida dentro da facção criminosa, mesmo sendo a “trafigata” para os íntimos, uma loura de 26 anos, que gosta de roupas caras e de manter o corpo malhado, inferniza Piraquara, na Grande Curitiba. Depois da execução do marido, no fim do ano passado, Camila de Andrade Pires Marodim, de 26 anos, foi presa e passou a ser apontada como chefe de uma quadrilha numa investigação que tem ajudado a explicar por que a cidade é uma das mais letais do Paraná. Solta após um mês de prisão sob o argumento da defesa de que os três filhos — de 7, 4 e 1 ano — precisavam da mãe, Camila foi alvo de um atentado, na segunda -feira, em que escapou de mais de 20 tiros.


Camila Marodin e amigo foram alvos de cerca de 20 tiros no bairro do Alto Boqueirão, onde ela cumpre prisão domiciliar.

Enquanto o município quer sossego, a realidade do mercado de drogas local, em pé de guerra, o põe na lista dos mais violentos da Região Metropolitana de Curitiba, que tem 29 cidades.

Marido morto no bufê

No ano passado, de janeiro a setembro, as estatísticas de criminalidade contabilizavam 28 casos de homicídios dolosos, um latrocínio e duas vítimas de feminicídio. O tráfico é o principal problema de segurança pública. Entre as drogas mais apreendidas, estão as sintéticas, como ecstasy e LSD.

O Centro de Inteligência da Polícia Militar do Paraná vem puxando o fio que joga luz sobre a atuação de Camila no mundo do crime. Com autorização judicial, os investigadores descobriram que a viúva era a mulher perfeita para Luiz Hortz Marodim, pai de seus filhos, executado em novembro de 2021. Ele foi morto na porta do bufê onde acontecia o aniversário de uma das crianças. Em relatório anexado a processo judicial, a polícia afirma que Luiz cuidava do abastecimento e da venda dos entorpecentes enquanto ela se dedicava à lavagem de dinheiro, um trabalho que exigia mais esforço intelectual, para “esquentar” a intensa movimentação bancária do casal.

A partir de análises bancárias, foi possível saber que, enquanto o marido movimentou R$ 755,3 mil em quase um ano, Camila lidou, no mesmo período, com um valor mais de três vezes maior. Foram cerca de R$ 3,2 milhões usados na aquisição de imóveis e joias para, segundo os investigadores, esconder patrimônio ilícito, entre abril de 2020 e fevereiro do ano passado. Ela usaria contas de pessoas físicas e jurídicas, como uma loja de moda.

Depoimento dia 9

Agora, a grande indagação da polícia é o que está por trás da emboscada sofrida por Camila no início desta semana, quando ela chegava em casa, no bairro Alto Boqueirão, onde cumpre, com tornozeleira eletrônica, prisão domiciliar. Imagens de câmeras de segurança, obtidas pelo GLOBO, mostram o momento em que a “trafigata” para o carro na frente da garagem do imóvel e, ao perceber os disparos, se joga no banco do veículo. Em fração de segundos, Camila se recompõe, abandona o local quando percebe que o portão abriu e foge para os fundos da casa, atrás do homem que a acompanhava. Os dois estariam voltando de compras em um mercado. Um cachorro a segue quando ela entra em casa.

Para o advogado Cláudio Dalledone, que representa Camila, a cliente é inocente e alvo de perseguição, possivelmente de criminosos rivais do marido. Ele lembra que no dia 9 a viúva será ouvida na primeira audiência sobre o caso na Justiça, o que pode ter gerado um receio de possíveis revelações. De acordo com Dalledone, os três filhos de Camila estavam em casa quando ela foi atacada.

— Algumas pessoas não querem que ela tenha a possibilidade de falar — diz o advogado, acrescentando que as acusações contra Camila, que ainda não foi julgada, serão respondidas no curso do processo.

Os esclarecimentos também são considerados fundamentais para as autoridades ajustarem as políticas de combate ao tráfico de drogas na cidade, com população estimada em pouco mais de 100 mil pessoas. Piraquara está entre os três municípios da Região Metropolitana de Curitiba com as maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes. Em 2019, a lista era encabeçada por Fazenda Rio Grande (40,91 por 100 mil habitantes), seguida de Campo do Tenente (38) e Piraquara (34,2).

De acordo com as investigações, a facção que dominava o local, chefiada pelos Marodim, tinha pelo menos 30 homens. Somente na venda da droga fracionada, atuavam 11 pessoas. A polícia havia pedido o sequestro dos bens do casal, acusado de manter em segredo imóveis de luxo que mantinha em nomes de laranjas.

o processo sobre o casal, são listados inúmeros endereços que são atribuídos aos dois. No caso de um tríplex, a fome ajudou os investigadores a chegarem ao imóvel. Em uma das ligações de Camila grampeadas por autorização judicial, ela pediu comida a um restaurante de carnes e deu o apartamento como endereço.

Carros de luxo e jet ski

Os carros são um capítulo à parte. Um levantamento da PM indica que o casal usava, pelo menos, um Camaro branco, um Fox vermelho, um Hyundai prata e uma motocicleta BMW. Em outro telefonema, Camila cita litígios envolvendo o Camaro para uma advogada, observando que o carro era financiado e custaria R$ 180 mil. Durante o ataque na segunda-feira, ela dirigia um Jetta. No rol de veículos que podem ter sido encobertos no patrimônio do casal, há ainda um jet ski.

O delegado Tito Barichello, que investiga o atentado, diz que os criminosos, que estão sendo procurados, dispararam de um Palio cinza, de placa clonada.

— Eram dois homens dentro do carro. Um deles desce e, com uma pistola semiautomática, dispara várias vezes. Contamos 18 marcas só na lataria do veículo. De uma forma milagrosa, ela acaba escapando. Se joga no banco do carro e, por ser uma pessoa leve e ágil, fica ilesa. Mas a outra vítima foi atingida — afirma Barichello. — No mundo do tráfico, vigora a lei do silêncio. Eles resolvem as questões deles sem executar a dívida; eles cobram com a vida. É um mundo paralelo.

O advogado Dalledone informa ainda que o imóvel no Alto Boqueirão, onde aconteceu a emboscada, é o terceiro usado por ela desde o início do período de prisão domiciliar, em dezembro. O homem ferido não foi identificado, mas já estaria fora de perigo. Ele teria sido atingido na altura do abdômen e ainda está internado no Hospital do Trabalhador, em Curitiba. Camila não teve um arranhão.

O assassinato do ex-policial militar Thiago César Carvalho, conhecido como Tagarela, em novembro, na Região Metropolitana de Curitiba, também pode ter relação com a guerra do tráfico.

Fonte: O Globo


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