Em junho de 2020, Thiago Gutemberg Gomes, o Curisco, precisava consertar armas e comprar material bélico para fortalecer a milícia de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Pelo WhatsApp, o miliciano, apontado pelo Ministério Público como responsável pelo recolhimento das taxas cobradas de moradores, entrou em contato com um especialista: “Fala comigo, irmão!”, escreveu Curisco, no dia 21 daquele mês, a um contato salvo como “Alex Armeiro”. O interlocutor já sabia qual era o assunto e respondeu: “Amanhã, eu vou comprar o tirante do gatilho e mola” — peças usadas na montagem de armas. “Assim que resolver, te ligo”, completa. No dia seguinte, os dois marcam um encontro para a entrega da encomenda.
Sargento armeiro
Segundo a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio, o interlocutor do miliciano é o sargento da PM Alex Bonfim de Lima Silva, lotado no 39º BPM (Belford Roxo). A experiência de Silva no manuseio de armas, no entanto, não se explica somente por sua profissão: o policial também tem um Certificado de Registro (CR) emitido pelo Exército e integra a categoria dos Caçadores, Atiradores e Colecionadores, os CACs — que tiveram o acesso a armamento expandido desde o início do governo Bolsonaro. Há seis meses, o PM armeiro está preso acusado de consertar armas e fornecer material bélico para a milícia na Baixada Fluminense.
No diálogo com o miliciano, que continuou no dia seguinte, o sargento avisou que o “veículo” — segundo a polícia, ele se referia ao armamento — estava pronto. Curisco ainda perguntou se o PM conseguiu “trocar a empunhadura da arma” e, em seguida, disse que “daria um pulinho” no 39º BPM para buscar o material. Por volta das 14h41, o PM colecionador enviou sua localização, a dois quilômetro do quartel, para o miliciano. “Chegando”, respondeu Curisco. Cerca de uma hora após o encontro, o miliciano aprovou o resultado do trabalho: “Irmão, ficou 100%”. Em seguida, o armeiro se despede: “Qualquer coisa, só chamar”. No dia seguinte, pela manhã, Curisco fez um novo pedido ao PM: “Você não consegue carregador pra essa Beretta?”. A resposta do sargento armeiro é promissora: “Vou desenrolar”.
A troca de mensagens foi extraída pela Polícia Civil do celular de Curisco, apreendido apenas dois dias depois da entrega da encomenda. Na ocasião, o miliciano foi preso em flagrante, quando fazia cobranças a moradores, armado com uma pistola. Com base nas conversas encontradas no aparelho, a Justiça decretou, em setembro do ano passado, a prisão do sargento Alex Bonfim e de mais 12 acusados de integrar a milícia que extorquia dinheiro de moradores e comerciantes e controlava o sinal clandestino de televisão, a venda de gás e até os pontos de mototáxi de quatro bairros de São João de Meriti.
Três anos antes de ser preso, o PM conseguiu emitir, junto ao Exército, seu CR, sob o número 232278. No documento — assinado pelo coronel Mário Cesar Silva Machado, chefe do Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados (SPFC) da 1ª Região Militar à época —, consta que Bonfim está apto para as atividades de caça, colecionamento e tiro desportivo. Na prática, o CR autoriza seu portador a adquirir material bélico legalmente. A partir do início de seu governo, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro possibilitou aos CACs, através de decretos, o acesso a maiores quantidades de armas e munição. Por exemplo, atualmente, atiradores podem ter até 60 armas; antes o máximo era de 16. Já colecionadores, como Bonfim, podem ter até cinco armas de cada tipo e modelo, sem um número limite para o acervo. Até 2019, só uma arma por modelo era permitida.
Foto: Agência O Globo |
A acusação de trabalhar para a milícia de São João de Meriti não é a primeira da carreira de Bonfim. Em novembro de 2019, ele já havia sido alvo de outra operação sob suspeita de vender armas a outro grupo paramilitar, o que domina a cidade vizinha de Belford Roxo, onde o PM armeiro mora e trabalha. Na ocasião, Bonfim teve ligações interceptadas negociando uma arma com um homem suspeito de integrar a quadrilha e teve um mandado de busca e apreensão expedido em seu nome. Na casa do PM, policiais civis encontraram um fuzil, uma carabina, três revólveres — dois deles com a numeração raspada —, uma submetralhadora, uma pistola e uma espingarda — as três também sem número de série. Bonfim acabou preso em flagrante por posse ilegal de arma.
CAC a serviço do crime
Em depoimento, um dos policiais que participou da operação contou que, após os agentes encontrarem parte das armas dentro da casa, o PM afirmou que não havia mais nenhum armamento no local. Pouco depois, o restante do armamento — todo o material não numerado — foi encontrado num compartimento na área externa da casa.
Bonfim, entretanto, só ficaria preso por três meses: em fevereiro de 2020, ele foi posto em liberdade por decisão da 6ª Câmara Criminal. Os desembargadores acolheram os argumentos da defesa, que sustentou que o sargento “é colecionador de armas e, devido a isso, tinha o material em sua residência, mas sem nenhuma utilidade”. A liberdade duraria pouco: no ano seguinte, ele seria novamente preso, acusado de ligação com a milícia de São João de Meriti. Atualmente, o sargento responde a três processos, acusado de integrar milícia e de posse e de comércio ilegal de armas.
Procurado, o advogado do sargento, Marcos André Santos Souza, alegou, por meio de nota, que Bonfim “possui três armas registradas na PM, não precisando de CAC para obtenção das mesmas”. Ainda segundo a nota, a defesa aguarda a absolvição do PM nos processos a que ele responde “por total falta de provas e equívocos nas denúncias realizadas”. O CR de Bonfim não é mais válido: ele deveria ser renovado até setembro de 2021, três anos após sua emissão, justamente o mês em que o sargento foi preso.
Em fevereiro passado, um levantamento do GLOBO mostrou que CACs usam suas licenças para abastecer facções do tráfico, milícias e grupos de extermínio que agem em nove estados brasileiros. Um projeto de lei prestes a ser votado no Senado, o PL 3.723/2019, proposto pelo Executivo para alterar o Estatuto do Desarmamento, pode flexibilizar ainda mais as normas para a categoria. O projeto propõe, entre outros pontos, a autorização do transporte de uma arma municiada para atiradores e caçadores, sem restrição de horário, e dificulta a fiscalização, ao determinar que investigadores que desejem ter acesso a bancos de dados sobre CACs justifiquem o motivo da pesquisa.
Fonte: O Globo