Chamada de crononutrição, nova ciência estuda como o organismo reage de forma diferente aos alimentos de acordo com o período do dia
Ciclos do corpo afetam hormônios que participam do metabolismo dos alimentos Editoria de Arte/Andre Mello
Na busca por uma vida mais saudável, a alimentação ocupa um papel central. Mas, enquanto muito se fala sobre o que comer, existe uma outra pergunta que vem crescendo: existe hora certa? Sim e o questionamento impulsionou o interesse sobre a chamada crononutrição, um conceito que parte da premissa de que a hora escolhida para cada refeição impacta o corpo de formas diferentes. E essas estratégias, que buscam adequar a alimentação com base no horário do dia, podem não apenas melhorar a qualidade de vida, como prevenir problemas de saúde e ajudar no tratamento de doenças, explicam os especialistas.
— A questão maior é que o nosso corpo não é uma linha reta ao longo das 24 horas do dia, ele altera o comportamento, e dentro dessas variáveis estão aquelas relacionadas à alimentação. Ele recebe o alimento de forma diferente, a capacidade digestória, a quantidade de enzimas que a gente secreta, tudo isso muda. Então se baseia muito na ideia de que nós temos melhores e piores horários para comer — explica a nutricionista Cibelle Crispim, professora e coordenadora do Grupos de Estudos em Cronobiologia Nutricional da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
É uma área nova, afirmam os especialistas, mas que ganha cada vez mais relevância na comunidade científica. Ela é derivada de um campo ainda maior, chamado de cronobiologia, que investiga os ritmos biológicos e os impactos no corpo de modo mais amplo. Já a crononutrição é parecida, mas observa essas variações do ritmo pelo ângulo da refeição e da metabolização dos alimentos.
— É realmente um tema emergente, que passou a ocupar um espaço mais forte a partir de 2014 e recentemente ganhou esse nome. O desenvolvimento do campo começou com estudos de trabalhadores em turnos diferentes, que mostraram que eles tinham variações negativas nos padrões de consumo alimentar e tinham uma propensão maior a desenvolver algumas alterações metabólicas e obesidade por conta disso — afirma o médico endocrinologista e nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN).
Como funciona o ciclo circadiano
A nutricionista Priscilla Primi, colunista do GLOBO e mestre pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) explica que esse ciclo, e as suas variações, é comandado pela secreção de hormônios durante o dia. Por isso, entender quais deles estão mais ativos em quais horários, e como eles impactam na alimentação, é parte crucial da crononutrição.
— Nós temos uma secreção de hormônios diferente na parte da manhã e da noite, o que impacta diretamente no funcionamento do metabolismo, na resposta glicêmica, na absorção dos nutrientes. As pesquisas dizem que temos uma melhor resposta na absorção dos nutrientes durante o dia, até meados da tarde. Isso porque o cortisol, que é o nosso hormônio de vigília, de alerta, e a insulina, que regula a glicose, têm o pico pela manhã. Enquanto isso, a melatonina, hormônio do sono, que reduz essa atividade, tem o pico na madrugada — afirma Priscilla.
Em resumo, isso quer dizer que o corpo tem um comportamento natural que prepara o organismo para receber e metabolizar alimentos pela manhã e pela tarde, enquanto não tem a mesma eficiência para absorver as refeições à noite.
— Quando você acaba invertendo esse ciclo, fazendo jejum de manhã, que é quando o corpo metaboliza melhor os carboidratos, ou fazendo refeições maiores à noite, isso é prejudicial. Porque à noite esses hormônios não são bem secretados, e aí na hora que você deveria fazer essa digestão e gastar essas calorias, você está dormindo — complementa a nutricionista.
Especialistas destacam o papel importante do sono na regulação desse ciclo, uma vez que é ele um dos responsáveis por estabelecer um padrão. Isso porque é por influência da exposição à luz e da hora de dormir que o corpo determina a liberação dos hormônios.
— É difícil desatrelar a crononutrição do sono. Porque nosso corpo tem um relógio, que nos dá o sinal de que é dia ou noite. São células no cérebro que recebem um sinal que é escuro, por exemplo, e transmite para os órgãos que é hora de dormir. Aí o próprio cérebro começa a secretar os hormônios ligados à noite. Da mesma forma, o claro da manhã é um sinal para estimular essas mesmas células para avisar ao corpo que é dia, e secretar os hormônios da manhã — explica Cibelle.
Além disso, a falta de um sono adequado influencia comportamentos que levam a um excesso de alimentos durante a noite – momento em que o corpo não está preparado para absorvê-los. Um estudo da Universidade Northumbria, na Inglaterra, publicado na revista científica Advances in Nutrition, constatou que pessoas que dormem mais tarde têm mais tendência a dietas não saudáveis, consumir mais álcool, açúcar, bebidas cafeinadas e ricas em gordura.
Porém, a proposta da crononutrição não são mudanças radicais que levem a um jejum completo ao anoitecer, por exemplo, e sim um cuidado maior com refeições mais pesadas no período da noite.
— A questão não é deixar de comer, mas comer menos, de forma mais saudável e leve, e olhar para o ritmo do funcionamento do corpo de forma geral, então priorizar os horários pela manhã — orienta Cibelle.
Prevenção e controle de doenças
Embora muitos acreditem que os riscos do desalinhamento na hora de comer estão relacionados apenas a um maior ganho de peso, os especialistas esclarecem que os principais objetivos da crononutrição são na verdade oferecer uma melhora na qualidade de vida e, principalmente, ajudar na prevenção de doenças ligadas a uma má metabolização dos alimentos.
Uma análise de diversos estudos da área, conduzida por pesquisadores da King's College de Londres, no Reino Unido, e publicado na revista científica Proceedings of the Nutrition Society, encontrou uma ligação entre comer de forma irregular com o relógio interno e um risco elevado para hipertensão arterial, diabetes tipo 2 e obesidade.
— Além disso, existe um corpo de evidências que mostra que o hábito de tomar café da manhã é considerado como um marcador de saúde. Então nós vemos que aqueles que sistematicamente tomam café da manhã são mais protegidos da obesidade. Isso, muito provavelmente, é porque o alimento pela manhã sacia mais, preenche melhor a necessidade calórica, torna as atividades físicas durante o dia mais fáceis de serem realizadas — explica Cibelle.
Dessa forma, os pesquisadores explicam que a crononutrição pode ser utilizada não apenas para reduzir o risco para essas doenças, como para melhorar a vida daqueles que já convivem com ela. Um estudo publicado na revista científica Nutrition & Diabetes, de pesquisadores de Cingapura, constatou que uma alimentação alinhada com base na crononutrição pode ajudar a manter os níveis de glicose dentro do adequado para pessoas com diabetes tipo 2.
Isso porque, entre outros fatores, consumir alimentos com baixo índice glicêmico pela manhã melhora a resposta à glicose com um efeito maior do que quando consumidos à noite, afirmam os cientistas.
— Quem tem doenças metabólicas, síndrome de ovário policístico, resistência à insulina, doenças cardiovasculares, são todas doenças que podem ser muito beneficiadas quando você usa a crononutrição como uma estratégia de intervenção para uma melhora na qualidade de vida — afirma Priscilla.
Cronotipos
Além das variações dos ciclos circadianos impostas por hábitos do dia a dia, como precisar trabalhar até mais tarde ou acordar mais cedo que o normal para estudar, há predisposições naturais relacionadas a classificações chamadas de cronotipos.
— Existem pessoas que acordam 6h da manhã felizes, outras acordam com mais dificuldade. Da mesma maneira, tem pessoas que viram a noite com facilidade, outras sentem sono mais cedo. Esses cronotipos variam de pessoa para pessoa, mas não tiram a natureza do ser humano de ser um animal diurno — explica Cibelle.
Os cronotipos são divididos em três. O matutino é atribuído àquelas pessoas que preferem começar e terminar o dia mais cedo. De acordo com a professora da UFU, essas pessoas têm uma tendência a se alimentarem melhor, a não deixarem de lado o café da manhã e, por estarem mais alinhadas ao ciclo circadiano, estão mais protegidas contra as doenças metabólicas.
Já o cronotipo vespertino é o contrário. São aqueles que, se puderem, escolhem dormir e acordar mais tarde. Cibelle explica que esse cronotipo oferece mais riscos, uma vez que leva a comportamentos mais nocivos como comer mais à noite e ter um sono reduzido.
— A boa notícia é que, na população, temos por volta de 10% a 15% em cada um desses extremos, mas uma parcela maior de pessoas são do cronotipo que chamamos de intermediário ou indiferente. É aquela pessoa que transita bem nos dois lados. Ela não vai até muito tarde, mas também não acorda tão cedo, costuma seguir aquele padrão de acordar 7h e dormir 22h30. É um cronotipo mais perto do matutino, que tende a padrões de comportamento melhores — complementa a especialista.
Para ela, é importante entender o cronotipo da pessoa pois isso influencia nas estratégias que podem ser adotadas para uma melhora na qualidade de vida com base na crononutrição. Isso porque não é efetivo, por exemplo, falar sobre um café da manhã reforçado com alguém do cronotipo vespertino. A orientação, segundo a nutricionista, precisa ser direcionada a evitar os excessos, especialmente da alimentação noturna.
Fonte: O Globo