Passagens aéreas, hospedagens, refeições e brindes estão entre os auxílios concedidos por empresas; prática é ilegal no país
Fiocruz: 70% dos pediatras recebem patrocínios da indústria de fórmulas infantis no Brasil, mostra estudo. Agência O Globo
Embora seja uma prática ilegal no Brasil, o assédio de fabricantes de fórmulas infantis com patrocínios a médicos e outros profissionais da saúde é uma realidade por todo o país. Segundo dados do estudo Multi NBCAL, realizado em seis cidades brasileiras por pesquisadores de 10 instituições – entre elas Fiocruz, USP, UnB e outras universidades públicas – 7 a cada 10 pediatras têm brindes, refeições, hospedagens, passagens e outros itens pagos pela indústria de substitutos do leite materno durante eventos científicos.
Para o coordenador do Observa Infância, da Fiocruz, e autor do trabalho, Cristiano Boccolini, o cenário influencia diretamente os poucos avanços que o Brasil tem registrado no índice de amamentação. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o aleitamento materno exclusivo é orientado até os seis meses de idade, e indicado como complementar até os dois anos.
— Desde 1986, quando foi realizado o primeiro estudo a nível nacional sobre aleitamento materno, avançamos pouco em relação às taxas de amamentação exclusiva e continuada. Um dos componentes que não favorece a melhoria é justamente o descumprimento desta Lei. Profissionais de saúde que deveriam estar promovendo o aleitamento materno, mas muitas vezes têm essa questão do conflito de interesse porque acabam recebendo benefícios da indústria que compete diretamente com a amamentação — afirma o pesquisador, doutor em epidemiologia em saúde pública.
De acordo com o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), de fato houve um aumento em relação à prevalência do aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade no Brasil de 1986, quando era de somente 2,9%, para 2020, quando alcançou 45,7%. Porém, o avanço é considerado insuficiente, uma vez que o índice permanece distante do preconizado pela OMS. A organização considera taxas de até 49%, realidade do Brasil, um cenário “razoável”. Entre 50% e 89% é considerado “bom” e, na faixa de 90% a 100%, “muito bom”.
Para chegar às conclusões do novo estudo da Fiocruz, foram entrevistados 217 profissionais entre 2018 e 2019, quase metade pediatras. No geral, praticamente todos (85,7%) participaram de congressos científicos nos últimos dois anos, e mais da metade deles (54,3%) foram eventos patrocinados por empresas de fórmulas infantis. Nestes eventos, 71,1% dos pediatras receberam patrocínios da indústria de substitutos do leite materno. Entre nutricionistas, essa proporção é de 2 a cada 5 e, entre fonoaudiólogos, de 1 a cada 3.
O pediatra Daniel Becker, sanitarista do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a oferta de benefícios pelas empresas aos médicos não é uma novidade.
— Essa é uma prática muito conhecida que acontece no Brasil há décadas. Existem muitos pediatras que são contra essa influência das empresas, mas é algo muito institucional. As empresas investem num verdadeiro massacre de propagandas com os benefícios para que depois o médico olhe para os produtos dessas marcas com outros olhos — afirma o médico.
As empresas mais citadas como patrocinadoras pelos profissionais foram a Nestlé, mencionada por 85,1%, e a Danone, por 65,3%. Os incentivos mais comuns identificados pela Fiocruz foram materiais de escritório, relatados por 49,5% dos profissionais; refeições ou convites para festas, por 29,9%; brindes, por 21,6%; pagamento de inscrição, por 6,2%, e de passagem para o congresso, por 2,1%.
Em nota, a Danone afirmou que atua de maneira íntegra e que "não compactua com ações que não estejam de acordo com a legislação brasileira ou condutas que não sejam pautadas pela ética". Em relação à pesquisa, afirmou que "apoia eventos técnicos seguindo a legislação em vigor" e que "não oferece qualquer benefício, patrocínio ou incentivos para profissionais de saúde".
Legislação proíbe atuação de empresas
Segundo a Lei 11.265/2006, que promove e protege o aleitamento materno no Brasil, fabricantes e distribuidores de fórmulas infantis, fórmulas para crianças de primeira infância, leites, alimentos de transição e produtos de puericultura correlatos não podem conceder patrocínios financeiros ou materiais a pessoas físicas. O decreto que regulamenta a lei define patrocínio como o custeio de materiais, pesquisas, eventos ou custeio de profissionais de saúde para participação em atividades.
Embora a legislação brasileira proíba essa atuação pelas empresas, o recebimento desses itens pelos médicos não é ilegal. Além disso, os dados do Multi NBCAL mostram que apenas 54,4% dos profissionais, pouco mais da metade, tinham conhecimento sobre a Lei.
O novo trabalho foi conduzido por 16 pesquisadores de 10 instituições acadêmicas brasileiras: Fiocruz, UFPA, UFMG, ISS/SP, USP, UNB, UFPB, UFSC, Uerj e UFF, em parceria com a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN-Brasil). As cidades envolvidas no estudo foram Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Ouro Preto (MG), Florianópolis (SC), João Pessoa (PB) e Brasília (DF).
No Brasil, além da relação com os profissionais da saúde, a propaganda e a comercialização de substitutos do leite materno também são reguladas. Inspirada no Código Internacional dos Substitutos do Leite Materno (OMS/Unicef), de 1981, a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL) se tornou Lei em 2006.
Porém, um outro estudo conduzido pela mesma equipe de Boccolini analisou a venda de dois tipos de produtos, os que têm promoção comercial proibida – fórmulas infantis, mamadeiras e chupetas – e os que têm promoção comercial permitida, desde que acompanhada de frase de advertência sobre a importância do aleitamento materno – leites, compostos lácteos e alimentos de transição, como papinhas, sopinhas e cereais infantis. Os resultados mostraram que 6 em cada 10 farmácias e supermercados brasileiros infringem a legislação.
— É uma Lei que já tem 30 anos no Brasil, então não esperávamos um número tão alto. Porém, nós sabemos que essa é uma realidade, não apenas no Brasil, como no mundo inteiro. Um relatório da Organização Mundial da Saúde deste ano mostra esse mesmo cenário, é uma atuação de forma sistemática, um padrão que se repete em diversos países — diz Boccolini.
O relatório, publicado neste ano, teve o pesquisador da Fiocruz como consultor, e aborda o impacto global do marketing excessivo na promoção e na venda de produtos que competem com a amamentação dos pequenos. Segundo o documento, as postagens de companhias que fabricam produtos como fórmulas infantis têm um alcance até três vezes maior que publicações relacionadas aos benefícios do aleitamento materno.
Além disso, mostra que mulheres que publicam nas redes sociais conteúdos sobre amamentação passam a ser assediadas pela publicidade de produtos como mamadeiras e fórmulas.
— Nós estamos falando da proteção da amamentação e das mulheres contra o marketing muitas vezes abusivo da indústria de alimentos. Essas mulheres deveriam ter um ambiente isento de propagandas que colocam em dúvida a capacidade dessas mães de amamentar, e sim receber todas as informações sobre a amamentação e sobre os benefícios do aleitamento materno. Isso para que elas tomem uma decisão em relação à alimentação dos seus filhos sem a influência dessas indústrias — afirma o coordenador do Observa Infância.
Importância do aleitamento materno
Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a amamentação – prática orientada de forma exclusiva nos seis primeiros meses de vida, e como um complemento até os dois anos – oferece benefícios para o bebê e para a mãe. Para o recém-nascido, o aleitamento materno previne a formação incorreta dos dentes, problemas na fala, fortalece o sistema imunológico para proteger de doenças e proporciona um melhor desenvolvimento para o bebê. Além disso, é um alimento completo, dispensando até mesmo a necessidade de água ou outras comidas durante o período em que é recomendado de forma exclusiva.
Um estudo feito pela Universidade de Oxford, publicado na revista PLoS ONE, com 7.855 crianças, mostrou um impacto direto entre o aleitamento e o desenvolvimento cognitivo posterior. Jovens de 14 anos que foram amamentados por pelo menos 12 meses, por exemplo, tiveram resultados melhores em testes de vocabulário do que aqueles da mesma idade que não foram amamentados – uma diferença equivalente a quase três pontos de QI.
Para a mãe, o ato de amamentar levo o útero a voltar ao tamanho normal de forma mais rápida e diminui o sangramento. Esses benefícios ajudam a prevenir quadros de anemia materna e reduzem o risco de câncer de mama e de ovários, segundo a SBP.
Para Becker, a forte influência da indústria entre os médicos relatada pelo estudo da Fiocruz traz de fato prejuízos para a amamentação. Exemplo disso é o uso precoce de mamadeiras, que favorece problemas para sucção do peito da mãe pelo bebê.
— Existe algo chamado confusão de bico. Quando o bebê começa a sugar a mamadeira, a maioria muito rapidamente passa a recusar o peito. Porque a sucção do peito é muito mais complexa que a da mamadeira, só que é ela que molda a boca do bebê, a arcada dentária, as vias aéreas, da forma adequada.
No entanto, ele reconhece que há outros pontos importantes no contexto brasileiro que devem ser levados em consideração ao se analisar a realidade do aleitamento materno.
— A sobrecarga das mulheres, que acabam cuidando muitas vezes sozinhas de um bebê pelo alto número de famílias em que o pai não está presente, é um ponto muito importante. Nós também somos o país que mais faz cesáreas no mundo, com uma taxa quase cinco vezes superior ao aceitável, e ela dificulta o aleitamento em vários níveis. Retarda a descida do leite, pode provocar dores na mulher e dificulta o contato da mãe com o bebê no pós-operatório — afirma o pediatra.
Fonte: Fiocruz