Patrícia descobriu câncer e gravidez ao mesmo tempo — Foto: Arquivo pessoal/Patricia Bergara |
Quem conversa com Patrícia Bergara, 35, hoje, nem imagina o sofrimento e a angústia que ela viveu durante a gravidez. Aos risos, ela conta que agradece o tempo todo por estar viva e por ter o privilégio de viver até as situações mais banais do cotidiano. “Meu filho está lá, fazendo bagunça, pulando no sofá, e eu sinto gratidão por poder estar aqui, vivendo isso — ainda que dê umas broncas nele depois”, conta, rindo. E dá para entender o sentimento. Para poder estar ali, vendo o filho pular e dar bronca, ela teve de superar vários obstáculos, assim como o pequeno Atreio, hoje com 3 anos. No mesmo dia em que soube que estava grávida, Patrícia descobriu também um câncer de mama.
“As duas notícias mudariam minha vida para sempre”, diz ela, em depoimento exclusivo a CRESCER. De início, como ela ainda era jovem e a gravidez estava no começo, a orientação era interromper a gestação e começar o tratamento. Mas ela sabia que o tratamento contra o câncer poderia tornar mais difícil o seu sonho de ser mãe e não desistiu do bebê. Foi uma luta, mas ela encontrou uma forma de cuidar do câncer, mesmo esperando um filho. E como se nada disso fosse suficiente, no terceiro trimestre ela descobriu que tinha síndrome de Hellp, uma doença rara e perigosa, que afeta uma a cada mil gestantes.
Aqui, ela conta toda a história. Confira:
“No final de 2018, eu havia parado de tomar meu anticoncepcional porque eu já estava tomando há muito tempo e o médico disse que seria bom fazer um intervalo. A ideia casou com estarmos em uma fase boa da vida. Embora não tenhamos planejado, pensamos que, se acontecesse de vir um bebê, seria muito bem-vindo. Em dezembro daquele ano, senti um caroço no peito. Pensei que pudesse ser pela interrupção do uso do hormônio, mas fui fazer meus exames de rotina.
Em janeiro de 2019, recebi duas notícias que mudariam minha vida para sempre: eu estava grávida e tinha um nódulo irregular na mama direita. Algumas semanas depois, fiz uma biópsia que revelou que eu tinha um carcinoma ductal invasivo, ou seja, câncer. Quando você fala ‘câncer’, a primeira ideia que você tem é morte e sofrimento, porque o tratamento é muito agressivo. Eu precisei de ajuda psicológica para entender, porque, ao mesmo tempo que pensava: ‘ótimo, vou ter um bebê, que alegria’, eu também pensava: ‘vou morrer e vou sofrer muito antes disso’.
A médica que me atendia na época disse que eu deveria operar imediatamente. Como eu era muito jovem e o câncer era muito agressivo, a gravidez teria de ser interrompida. O sentimento era de que eu tinha falhado miseravelmente como ser humano, como mulher. Ficamos arrasados, eu e meu marido. Então, começamos uma saga para buscar outras opiniões, pois queríamos ter um filho e, pelo que lemos e pesquisamos, o tratamento de quimioterapia, muitas vezes, acaba deixando a mulher infértil. Ou seja, poderíamos nunca realizar o sonho de ser pais.
Encontramos um outro médico que, com muita empatia, nos acolheu e nos deu conforto nesse momento tão difícil. E o mais importante: disse que seria possível, sim, seguir com a gravidez e realizar o meu tratamento.
Nós nunca tínhamos sequer ouvido falar que era possível estar grávida e ter câncer, muito menos realizar todo o tratamento durante a gestação. Mas o médico nos transmitiu muita segurança e seguimos todo o tratamento com ele.
No hospital, junto com outros profissionais, como mastologista e oncologista, decidimos que deveríamos começar a quimioterapia quando eu completasse três meses de gravidez. Comecei com 14 semanas de gestação. Foram quatro ciclos da chamada quimio vermelha [com uma classe de medicamentos chamada antraciclinas, que apresentam tons avermelhados] e doze quimioterapias brancas [formada por diversas classes de medicamentos que não apresentam nenhuma cor, como ciclofosfamida, taxanos, gencitabina e vinorelbina]. A adaptação, por causa da gestação, foi não colocar corticóide junto.
Mesmo assim, eu fiquei com medo. Afinal, quando você está grávida não pode pintar o cabelo, não pode tomar uma aspirina… Mas fomos fazendo acompanhamento com a obstetra, ela sempre pedia ultrassom e exames para saber como estava o desenvolvimento e víamos que estava tudo bem, que não tinha malformações e tudo ia seguindo normalmente. Isso foi dando uma tranquilidade.
Foi nessa época que decidimos contar para nossa família e para os amigos mais próximos o que estava acontecendo. Agora, tínhamos mais informações e um pouco mais de conhecimento e pudemos confortar a todos que nos amavam e sofreriam com aquela notícia.
Ela fez a quimioterapia, sem interromper a gestação — Foto: Arquivo pessoal/ Patricia Bergara |
Minhas quimioterapias aconteceram tranquilamente. Não tive reações adversas. Apenas, como esperado, meu cabelo caiu. De resto, não senti nada. Parece que meu bebêzinho tinha vindo para me proteger dos tormentos de um tratamento quimioterápico.
Tudo correu muito bem até eu completar 28 semanas. A vida parecia continuar me testando e eu fui diagnosticada com a síndrome de HELLP, uma doença rara que, geralmente, aparece como uma complicação da pré-eclâmpsia, que é a hipertensão gerada pela gravidez. Em resumo, quando a mulher com HELLP entra no terceiro trimestre de gestação, o corpo entende que a placenta é um corpo estranho e tenta, de alguma forma, eliminá-lo. Então, vem o aumento da pressão, queda das plaquetas, falência renal e do fígado, entre outras reações. É um problema que não tem cura. O procedimento recomendado, na maioria dos casos, é a interrupção da gestação. Essa síndrome não teve nenhuma relação com o câncer. Eu tinha duas doenças raras. É muita coisa. Eu fiquei muito mal.
Então, com 28 semanas, acabei sendo internada. Com 29 semanas, a gravidez teve que ser interrompida. Prematuro, Atreio (que vem do grego e significa "Aquele que nada teme") nasceu pesando 1,2 kg e medindo 34 cm. Ficou 45 dias na UTI Neonatal. Eu passei, ao todo, 11 dias na UTI.
Meu parto foi o pior momento da minha vida, não por atendimento, acolhimento, nem nada. Foi tudo perfeito. Mas eu lembro que acompanhava por um aplicativo o tamanho da criança por semana, comparado a frutas. Então, eu via que, com 29 semanas, ele tinha menos de 1 kg, tamanho de um mamão, era muito pequeno. Eu pensava: ‘Como vai sobreviver?’ Era um desespero atroz. Foi pior descobrir que ele ia nascer prematuro do que saber que eu tinha câncer. Uma coisa era eu enfrentar, outra coisa era ele correr risco.
Três semanas depois da minha alta hospitalar e, com todos meus exames normalizados, voltei a fazer as quimioterapias que faltavam. Foi uma época bem difícil e cansativa. Eu passava o dia com o Atreio na UTI e voltava para casa só para dormir. Eu sentia muito sono, muito cansaço, tinha acabado de passar por uma cesárea, estava com pontos, fazendo quimioterapia. Mas não sentia o gosto metálico, diarreia e outros efeitos colaterais da quimio, como muita gente sente.
Nos dias de quimio, meu marido ficava com ele na UTI e eu ia tomar a medicação. Depois, meu marido ia trabalhar e eu ficava com o nosso bebê.
No fim de agosto, Atreio teve alta e, no fim de setembro, finalizei meus ciclos de quimioterapia. Em novembro, Atreio operou de uma hérnia no intestino (comum em prematuros) e, em dezembro, fiz a mastectomia total com reconstrução. Foi outro momento complicado, porque, por recomendações médicas, eu não podia pegar peso por 45 dias. Ou seja, foram 45 dias sem poder cuidar do meu filho. Minha mãe e minha sogra ficaram em casa, era uma confusão (risos), uma queria fazer uma coisa, a outra queria fazer outra… Mas sou muito grata, elas me ajudaram muito. Eu também não pude amamentar meu filho, por conta da quimioterapia.
Depois disso, fiz 25 sessões de radioterapia, que terminaram em março de 2020, que foi exatamente quando começou a pandemia. Eu estava em uma rotina tão frenética de hospital, toda semana, eu fiquei feliz de não poder sair, por mais errado que isso possa soar. Eu só pensava que finalmente poderia maternar meu filho. Nos primeiros meses, eu curti meu bebê, cuidei dele, dei banho, fiz mamadeira. Foi só aí que o conheci mesmo.
Mas, claro, como paciente oncológica, com sistema imunológico que não é dos melhores do mundo, Atreio também, tendo nascido prematuro, dava muito medo. Ficamos, realmente, isolados. Mas, felizmente, veio a vacina!
Depois de terminar a radioterapia, comecei a hormonioterapia, que terei de seguir por 10 anos. Antes, eu precisava fazer os exames a cada três meses. Hoje, realizo exames periódicos a cada 6 meses.
No dia 31 de março deste ano, meu marido recebeu uma proposta de emprego em Berlim, na Alemanha, e nos mudamos.
A palavra “curada” é um pouco complicada, mas, hoje, não tenho sinais de câncer. Preciso seguir com a medicação e com os acompanhamentos. Minha oncologista fez todo um relatório em inglês do meu caso, agora faço os exames periódicos por aqui.
Eu fiquei com um pouco de medo de sair da minha terra e ir para um país onde eu não conhecia o idioma, a cultura, tudo diferente. Mas eu tinha enfrentado um câncer na gestação, além de uma síndrome rara, e eu tinha uma segunda chance de viver coisas incríveis. Por que não aproveitar? Ter tido o câncer me faz hoje querer aproveitar muito mais as coisas do que eu aproveitava antes.
Agora, às vezes, me pego olhando para uma árvore e pensando como ela é bonita, o pôr do sol, as crianças brincando no parque. Coisas que eu não reparava antes do câncer. Até, às vezes, acontecimentos que parecem ruins, que dão muito trabalho. Eu tenho um pensamento de ‘que bom que isso dá trabalho, que bom que posso estar aqui resolvendo isso’. É bem clichê, mas é gratidão mesmo. O câncer me deu essa noção, essa perspectiva. Meu filho está fazendo a maior bagunça, pulando no sofá e eu me sinto grata por poder viver isso. Claro que dou umas broncas, mando descer, mas que bom que estou aqui para isso. Sinto gratidão por cada momento, até pelos mais banais. Espero, com a minha história, poder ajudar as pessoas a verem que momentos ruins existem, mas que tudo passa”.
Fonte: Crescer