País vem sendo criticado por alegações de violação de direitos humanos durante os preparativos para a Copa
Trabalhador dentro do Estádio Lusail, em DohaPhoto by Francois Nel/Getty Images |
Kamal estava do lado de fora de uma loja com outros trabalhadores migrantes após mais um dia cansativo de trabalho, quando, segundo ele, foi preso com alguns outros em agosto deste ano. Sem explicação, o jovem de 24 anos diz que foi colocado em um veículo e, durante a semana seguinte, mantido em uma prisão do Catar, cujo local e nome ele não sabe.
“Quando me prenderam, não pude dizer nada, nem uma palavra, pois estava com muito medo”, contou ele ao CNN Sport, falando de casa no sul do Nepal, onde trabalha em uma fazenda desde que foi deportado há três meses.
Kamal (a CNN alterou os nomes dos trabalhadores nepaleses para protegê-los de retaliações) é um dos muitos migrantes que querem contar ao mundo suas experiências no Catar, país que neste mês sediará um dos maiores e mais lucrativos espetáculos esportivos, a Copa do Mundo, um campeonato que costuma unir o mundo, com milhões assistindo a gols espetaculares e celebrações cuidadosamente coreografadas.
Será um evento histórico, a primeira Copa do Mundo a ser realizada no Oriente Médio, mas também repleta de controvérsias. Grande parte diz respeito a questões mais sóbrias, como os direitos humanos, desde a morte de trabalhadores migrantes e as condições que muitos têm enfrentado no Catar, até pautas LGBTQ e os direitos das mulheres.
Kamal contou que ainda não recebeu de seus empregadores anteriores o bônus de 7 mil em rial do Catar (cerca de R$ 10.513) que ele diz ter direito, nem outros 7 mil riais de indenização por ter ferido dois dedos durante o trabalho.
“Não me disseram por que estava sendo preso. As pessoas só estavam lá, algumas estavam andando com suas compras, outras sentadas consumindo produtos de tabaco, e eles vêm e simplesmente prendem você”, acrescentou, antes de explicar que não poderia fazer perguntas, pois não fala árabe.
Descrevendo as condições na cela que dividiu com outros 24 trabalhadores migrantes nepaleses, ele disse que recebeu um cobertor e um travesseiro, mas o colchão no chão em que teve de dormir estava cheio de percevejos.
“Dentro da prisão tinha pessoas do Sri Lanka, Kerala (Índia), Paquistão, Sudão, Nepal, África, Filipinas. Tinha umas 14, 15 unidades. Numa prisão tinha cerca de 250, 300 pessoas. Umas 24 a 25 pessoas por cela”, estimou.
“Quando eles te levam para a cadeia, não te colocam numa cela imediatamente. Você fica numa varanda. Depois de um ou dois dias, quando uma cela fica vazia, eles colocam as pessoas de um país numa mesma cela”.
Usando um telefone contrabandeado, ele contou que falou com amigos, um dos quais levou seus pertences (incluindo seu passaporte) para a cadeia, embora ele tenha dito que foi mandado para casa depois de a embaixada nepalesa enviar uma cópia física de seu passaporte para a prisão. A CNN entrou em contato com a embaixada, mas ainda não recebeu um retorno.
Trabalhadores emDoha / (Photo by Sam Tarling/Corbis via Getty Images |
“Quando me colocaram no voo, comecei a pensar: ‘por que eles estão de repente mandando trabalhadores de volta? Não é uma, duas, dez pessoas… estão colocando 150, 200, 300 trabalhadores em um único voo”, continuou.
“Alguns trabalhadores estavam só do lado de fora usando roupas de trabalho e foram enviados de volta. Eles nem permitem que você pegue suas roupas. Eles te mandam de volta com a roupa do corpo”.
Kamal acredita que foi preso porque tinha um segundo emprego, o que é ilegal de acordo com a Lei Trabalhista de 2004 do Catar, e que permite que autoridades revoguem a licença de trabalho de alguém. Ele disse que fez de duas a quatro horas extras por dia para complementar sua renda, pois não ganhava o suficiente trabalhando oito horas por dia, seis dias por semana.
O Catar tem um período de carência de 90 dias, no qual um trabalhador pode permanecer no país legalmente sem outro responsável. No entanto, se sua licença não for renovada ou reativada nesse período, ele corre o risco de ser preso ou deportado por estar sem documentação.
Kamal contou ainda que recebeu a papelada após sua prisão, o que segundo a Anistia Internacional provavelmente explicaria por que ele foi detido. Mas como estava em árabe, ele não sabia o que estava escrito e nenhum tradutor foi oferecido.
Um funcionário do governo do Catar disse à CNN em comunicado: “Quaisquer alegações de que os trabalhadores estão sendo presos ou deportados sem explicação são falsas. A ação só é tomada em casos muito específicos, como quando um indivíduo participa de atos de violência”.
O funcionário acrescentou que 97% de todos os trabalhadores elegíveis estavam cobertos pelo Sistema de Proteção Salarial do Catar, estabelecido em 2018, “o que garante que os salários sejam pagos integralmente e no prazo. Além disso, mais trabalho estava sendo feito para fortalecer o sistema”, completou.
Alguns trabalhadores nunca voltaram para casa
Faltando poucos dias para o jogo de abertura, os assuntos em campo são uma mera nota de rodapé, pois este campeonato teve seu preço para os trabalhadores que deixaram suas famílias na crença de que colheriam um retorno financeiro em um dos países mais ricos do mundo per capita. Alguns nunca voltariam para casa. Nenhum dos três trabalhadores nepaleses com quem a CNN conversou estava mais rico. Na verdade, eles estão endividados e cheios de desolação.
No ano passado, o jornal britânico The Guardian reportou que 6.500 trabalhadores migrantes do sul da Ásia morreram no Catar desde que o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo, em 2010, sendo que a maioria estava envolvida em trabalhos perigosos e com baixos salários, muitas vezes realizados em condições de extremo calor.
A reportagem não relacionou todas as 6.500 mortes com projetos de infraestrutura da Copa do Mundo, e não foi verificada de forma independente pela CNN.
Hassan Al Thawadi, encarregado de coordenar os preparativos no Catar, disse à Becky Anderson, da CNN, que esse número de 6.500 pessoas que o The Guardian citou era uma “manchete sensacionalista” enganosa, e que a reportagem carecia de contexto.
Um funcionário do governo disse à CNN que houveram três mortes relacionadas ao trabalho em estádios e 37 mortes não relacionadas ao trabalho. Em uma declaração, o funcionário disse que os números citados pelo The Guardian eram “imprecisos” e “extremamente enganosos”.
“O número de 6.500 pessoas pega todas as mortes de trabalhadores estrangeiros no país ao longo de 10 anos e as atribuem à Copa do Mundo”, afirmou. “Isso não é verdade e negligencia todas as outras causas de morte, incluindo doenças, velhice e acidentes de trânsito. Também não reconhece que apenas 20% dos trabalhadores estrangeiros no Catar estão empregados em canteiros de obras”.
Foi amplamente divulgado que o Catar gastou US$ 220 bilhões (R$ 1,2 trilhão pela cotação atual) na preparação da Copa do Mundo, o que tornaria esta edição a mais cara da história, embora isso provavelmente inclua infraestrutura não diretamente associada à construção de estádios. Um porta-voz do Comitê Supremo para a Entrega e o Legado do Qatar (SC), que, desde a sua formação em 2011, é responsável pela supervisão dos projetos de infraestrutura e planejamento para a Copa do Mundo, disse à CNN que o orçamento do torneio foi de US$ 6,5 bilhões (cerca de R$ 35 bilhões), sem expandir o que esse custo cobria.
Oito novos estádios surgiram no deserto, e o estado do Golfo expandiu seu aeroporto, construiu novos hotéis, ferrovias e rodovias. Tudo teria sido construído por trabalhadores migrantes que, de acordo com a Anistia Internacional, representam 90% da força de trabalho de uma população de quase três milhões de pessoas.
Trabalhador trabalhando no interior do Estádio Lusail / Photo by Francois Nel/Getty Images |
Desde 2010, segundo organizações de direitos humanos, os trabalhadores migrantes têm tido de lidar com salários atrasados ou não pagos, trabalhos forçados, longas horas no calor, intimidação de empregadores e a incapacidade de deixar seus empregos por causa do sistema de patrocínio do país.
No entanto, a saúde, a segurança e a dignidade de “todos os trabalhadores empregados em nossos projetos permaneceram firmes”, afirmou um comunicado do SC.
“Nossos esforços resultaram em melhorias significativas nos padrões de moradia, regulamentos de saúde e segurança, mecanismos de reclamação, prestação de serviços de saúde e reembolso de taxas de recrutamento ilegais para os trabalhadores.”
“Enquanto a jornada estiver em andamento, estamos comprometidos em entregar o legado que prometemos. Um legado que melhora vidas e lança as bases para reformas trabalhistas justas, sustentáveis e duradouras”.
No ano passado, em entrevista à Amanda Davies, do CNN Sport, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, disse que, embora “mais precise ser feito”, o progresso aconteceu.
“Eu vi a grande evolução que aconteceu no Catar, que foi reconhecida – quero dizer, não pela Fifa –, mas por sindicatos de todo o mundo, por organizações internacionais”, continuou Infantino.
“Era difícil respirar”
Estamos, extraordinariamente, falando sobre uma Copa do Mundo em novembro, pois o torneio teve de ser transferido de sua época normal de junho e julho para o inverno do Catar. O calor é tão extremo nos meses de verão no país – as temperaturas podem chegar a 43ºC em junho – que jogar em tais condições poderia ser um risco para a saúde dos jogadores.
Hari tem 27 anos e, como muitos de seus compatriotas, deixou o Nepal e foi para o Catar, pois sua família – ele é um de cinco irmãos vivendo apenas com seu pai – precisava desesperadamente de dinheiro, principalmente para comer. Desde 2013, o salário mínimo exigido pelo governo do Nepal foi fixado em US$ 74 por mês (R$ 404 pela cotação atual), de acordo com o site minimum-wage.org. Hari contou que seu salário mensal no Catar era de 700 riais por mês (cerca de R$ 1.050).
Depois de se mudar para o Catar em 2014, ele trabalhou em quatro lugares durante quatro anos: em um supermercado, um hotel e um aeroporto, mas o trabalho mais difícil, segundo ele, foi na construção, onde teve de carregar azulejos em edifícios “seis a sete andares acima” num calor escaldante, além de instalar dutos em valas profundas.
“Era quente demais”, contou à CNN. “O mestre de obras era muito exigente e reclamava muito. Ele ameaçava reduzir nossos salários e horas extras.
“Tive de carregar azulejos no ombro até o topo. Era muito difícil subir pelos andaimes. Na obra dos dutos subterrâneos, haviam valas de 5 a 7 metros de profundidade, e tínhamos de colocar as pedras e o concreto, era difícil por causa do calor. Era difícil respirar. Tínhamos de subir por uma escada para beber água.
“Nunca aconteceu comigo, mas vi alguns trabalhadores desmaiarem no trabalho. Vi um bengali, um nepalês… duas ou três pessoas desmaiarem enquanto trabalhavam. Levaram o bengali para o atendimento médico. Não sei o que aconteceu com ele”.
Durante seu período no Catar, os regulamentos do governo geralmente proibiam os trabalhadores de trabalhar ao ar livre entre 11h30 e 15h, de 15 de junho a 31 de agosto. Ele contou que uma empresa para a qual trabalhava seguia essas regras.
E acrescentou: “Em alguns lugares, eles não tinham água. Em alguns lugares, não davam água na hora. Em alguns locais, tínhamos de bater em casas próximas e pedir água”.
Algumas organizações não governamentais acreditam que o trabalho por longas horas sob extremo calor causou uma série de mortes e colocou vidas em risco no Catar.
Em 2019, uma pesquisa publicada na revista Cardiology Journal, sobre a relação entre a exposição ao calor e as mortes de mais de 1.300 trabalhadores nepaleses entre 2009 e 2017, encontrou uma “forte correlação” entre o estresse por calor e a morte de jovens trabalhadores por problemas cardiovasculares nos meses de verão.
Trabalhadores no Al Bayat Stadium, em 2017 / Photo by Lars Baron/Bongarts/Getty Images |
O funcionário do governo disse à CNN que houve um “declínio consistente” na taxa de mortalidade dos trabalhadores migrantes, incluindo um declínio nos transtornos de estresse por calor, “graças em grande parte à nossa abrangente legislação sobre estresse por calor”.
“O Catar sempre reconheceu que ainda há trabalho a ser feito, em especial para responsabilizar os empregadores sem escrúpulos”, acrescentou. “A reforma sistêmica não acontece da noite para o dia, e mudar o comportamento de todas as empresas leva tempo, como é o caso de qualquer país no mundo”.
‘O calor não costuma ferir por si só’
Natasha Iskander, professora de Planejamento Urbano e Serviços Públicos na Universidade de Nova York, disse à CNN que o calor pode matar “de maneiras confusas e pouco claras”.
“Uma insolação fatal pode parecer um ataque cardíaco ou uma convulsão. Às vezes, o calor mata através do corpo, amplificando condições controláveis e muitas vezes silenciosas, como diabetes e hipertensão, e transformando-as em assassinos repentinos”, explicou.
“Como resultado, o Catar, nas certidões de óbito que emitiu após o colapso dos trabalhadores migrantes da construção civil, conseguiu se opor à correlação entre estresse por calor e mortes, e alegar que as mortes foram devidas a causas naturais, mesmo que a causa mais imediata seja o trabalho no calor”.
Estabelecer o número de trabalhadores feridos pelo calor é ainda mais difícil, continuou Iskander, porque muitas lesões podem não se tornar aparentes até anos mais tarde, quando os migrantes voltam para casa e os jovens “descobrem que seus rins não funcionam mais, que sofrem de doença renal crônica ou que seus corações começaram a falhar, exibindo níveis de fraqueza cardíaca debilitantes”.
“O calor não costuma ferir por si só”, acrescentou. “Os trabalhadores estão expostos ao calor e a seus perigos por meio das relações trabalhistas nos locais de trabalho do Catar. Os longos turnos, o trabalho físico intenso, as horas extras forçadas, as condições abusivas, o bullying, tudo isso influencia na forma como os trabalhadores são expostos ao calor. Além disso, as condições fora do local de trabalho também aumentam o poder de dano do calor – coisas como sono inadequado, alimentação insuficiente ou um quarto não suficientemente fresco para permitir que o corpo se recupere após um dia no calor. No Catar, os empregadores alojavam os trabalhadores em campos de trabalho, e os trabalhadores, por uma questão de política, eram segregados em áreas industriais, onde as acomodações eram terríveis”.
De acordo com a Anistia Internacional, as autoridades do Catar não investigaram “milhares” de mortes de trabalhadores migrantes ocorridas na última década, “apesar das evidências de ligações entre mortes prematuras e condições de trabalho inseguras”. O fato dessas mortes não serem registradas como relacionadas ao trabalho impede que as famílias recebam uma indenização, afirma a Anistia.
Em sua declaração, o SC informou que seu compromisso de divulgar publicamente as mortes não relacionadas ao trabalho foi além dos requisitos do Relatório de Ferimentos, Doenças e Ocorrências Perigosas (RIDDOR) do Órgão Executivo para a Saúde e a Segurança do Reino Unido, que define e fornece a classificação sobre como documentar incidentes relacionados e não relacionados ao trabalho.
A declaração ainda reiterou: “O SC investiga todas as mortes não relacionadas ao trabalho e fatalidades ligadas ao trabalho, de acordo com nosso Procedimento de Investigação de Incidentes, a fim de identificar fatores contributivos e estabelecer como as mortes poderiam ter sido evitadas. Esse processo envolve a coleta e análise de evidências e entrevistas com testemunhas para determinar os fatos do incidente”.
Ella Knight, da Anistia Internacional, disse ao CNN Sport que sua organização vai continuar a pressionar o Catar a “investigar minuciosamente” as mortes de trabalhadores migrantes, incluindo mortes passadas, para “garantir que as famílias dos falecidos tenham a oportunidade de reconstruir suas vidas”.
Trabalhadores em Doha, no Catar, em 2011 / Photo by Sean Gallup/Getty Images
Barun Ghimire é um advogado de direitos humanos em Katmandu, cujo trabalho se concentra na exploração de migrantes nepaleses que trabalham no exterior. Ele disse à CNN que as famílias que ele defende não receberam informações satisfatórias sobre a morte de seus entes queridos.
“As famílias enviam seus familiares jovens e saudáveis para trabalhar e recebem a notícia de que o membro da família morreu dormindo”, contou. Em uma entrevista separada no ano passado, Ghimire disse à CNN: “A Copa do Mundo do Catar é na verdade uma taça de sangue – o sangue dos trabalhadores migrantes”.
No ano passado, a legislação do Catar foi reforçada em relação às condições de trabalho ao ar livre, expandindo as horas de trabalho no verão durante as quais o trabalho ao ar livre é proibido – substituindo a legislação introduzida em 2007 – e, além disso, colocando em lei que “todo o trabalho deve ser interrompido se Índice de Bulbo Úmido – Termômetro de Globo (IBUTG) aumentar além de 32,1ºC em um local de trabalho específico”. As regulamentações também exigem verificações anuais de saúde dos trabalhadores, bem como avaliações de risco obrigatórias.
“Reconhecemos que o estresse por calor é um problema, especialmente nos meses de verão no Catar”, comentou um funcionário do governo do país. “Em maio de 2021, o Catar estabeleceu uma exigência para que as empresas realizassem verificações anuais de saúde dos trabalhadores, bem como avaliações de risco obrigatórias para mitigar os perigos do estresse por calor. Espera-se que as empresas adotem horários de trabalho flexíveis e automonitorados sempre que possível, ajustem as trocas de turno, apliquem pausas regulares, forneçam água potável fresca e gratuita e espaços de trabalho sombreados, e sigam todas as outras diretrizes com relação ao estresse por calor descritas pelo Ministério do Trabalho.
“Todos os verões, os agentes de trabalho do Catar realizam milhares de inspeções sem aviso prévio aos locais de trabalho em todo o país para garantir que as regras de estresse por calor estejam sendo seguidas”, acrescentou. “Entre junho e setembro de 2022, 382 locais de trabalho foram ordenados a fechar por violar as regras”.
Iskander alertou que um ponto de calor de 32,1ºC “já é perigoso”.
“Trabalhar com intensidade física que os trabalhadores da construção civil fazem no Catar por qualquer período e a essa temperatura é prejudicial para o corpo”, explicou.
“A regulamentação baseava-se no pressuposto de que os trabalhadores seriam capazes de controlar seu próprio ritmo e descansar conforme necessário sempre que sentissem estresse por calor. Qualquer pessoa que já tenha passado algum tempo em um canteiro de obras do Catar sabe que os trabalhadores não conseguem fazer isso”.
Knight ainda acrescentou: “O fato de que, muitas vezes, as investigações sobre as mortes de trabalhadores migrantes não estão acontecendo impede a possibilidade de implementação de maiores proteções, porque se você não sabe o que realmente está acontecendo com essas pessoas, como pode implementar e aplicar medidas eficazes para aumentar sua proteção?”.
Durante a maior parte do tempo no Catar, Hari disse que se sentia triste. Ele ficou vendo os aviões decolarem durante os seis meses que cuidou dos jardins do aeroporto, e se perguntava por que estava naquele país. Mas ele pagou 90 mil rúpias nepalesas (cerca de R$ 3.740) a uma empresa de recrutamento nepalesa que facilitou sua mudança. A empresa que o contratou também disse que ele teria de pagar de 2 a 3 mil riais (R$ 3.000 a R$ 4.500) para poder rescindir o contrato.
Seus amigos davam conselhos, enquanto ele continuava a trabalhar longos dias solitários para, segundo Hari, não ter dinheiro suficiente para viver e economizar para sua família. A Anistia Internacional alegou que muitos migrantes pagam altas taxas a “agentes de recrutamento sem escrúpulos em seu país de origem”, o que faz com que os trabalhadores tenham medo de deixar seus empregos quando chegam ao Catar.
Agora, ele é pai de dois filhos e trabalha arando campos no Nepal como motorista de trator, mas Hari espera um dia voltar a trabalhar no exterior, e pensa em ir para a Malásia. “Não quero que meus filhos passem pelo que eu passei. Quero construir uma casa, comprar um terreno. É o que estou pensando. Mas vamos ver o que Deus planejou”.
‘Nossos sonhos nunca se tornaram realidade’
Sunit está de volta ao Nepal desde agosto, depois de trabalhar apenas por oito meses no Catar. Sua expectativa era ficar lá por dois anos, mas o colapso da empresa de construção para a qual trabalhava fez com que ele e muitos outros voltassem, e ainda devendo dinheiro para eles. Ele tem dificuldades para encontrar emprego no Nepal, o que significa que alimentar seus dois filhos e pagar a escola é difícil.
Ele sonhava em assistir aos jogos da Copa do Mundo do telhado do hotel que ajudara a construir. Um dos estádios – cujo nome ele não sabe – ficava a 10 minutos a pé do hotel. “A gente costumava falar sobre isso”, disse ele sobre a Copa do Mundo. “Mas tivemos de voltar, e nossos sonhos nunca se tornaram realidade. As atividades no estádio eram visíveis do hotel. Podíamos ver o estádio do topo do hotel”.
Para ajudar a construir o hotel no centro da cidade, cujo nome ele não lembra, Sunit carregava sacos de gesso e cimento de 30 a 50 quilos nos ombros até o 10o. ou 12o. andares, relatou.
“O elevador quase nunca funcionava. Algumas pessoas não conseguiam carregar e paravam no meio do caminho. Se você não terminasse seu trabalho, era ameaçado dizendo que o salário seria descontado naquele dia”, lamentou. “O mestre de obras reclamava que a gente fazia pausas para beber água assim que começava a trabalhar. Ele nos ameaçava, dizendo: “Não vamos pagar pelo dia”. Nós dizíamos: “Tudo bem. Somos seres humanos, precisamos beber água”.
“Era muito quente. Costumava levar uma hora e meia, duas horas para chegar ao topo. Eu ficava cansado. Eu parava no caminho. Depois continuava, devagar. Sim, os supervisores costumavam gritar com a gente. Mas o que a gente podia fazer?”.
Ele contou que pagou a um agente no Nepal 240 mil rúpias nepalesas (cerca de R$ 10 mil) antes de partir para o Catar. Contou ainda que entrou com um processo na polícia contra o agente pois não conseguiu cumprir seu contrato de dois anos, mas não houve progresso. Sunit disse que os donos da empresa para a qual trabalhava no Catar foram presos porque não pagavam os trabalhadores. A empresa não respondeu imediatamente aos pedidos de comentário da CNN, nem respondeu a perguntas do Centro de Negócios e Direitos Humanos, um grupo de advocacy, sobre os protestos por salários não pagos.
Durante um mês, segundo Sunit, ele ficou em seu alojamento sem trabalho ou dinheiro para comprar comida – ele pegava emprestado para comer. Então ele e seus colegas de trabalho chamaram a polícia, que trouxe comida para eles.
“A polícia voltou depois de 10 a 15 dias e disse que prenderam o pessoal da empresa. (A polícia) distribuiu comida novamente”, contou. “Eles nos disseram que a empresa faliu e que o governo enviará todos os trabalhadores de volta para casa”.
“Estou muito triste”, acrescentou. “Quer dizer, é o que é. Nada vai mudar com arrependimento. Eu fico bravo (com a empresa), mas o que posso fazer? Mesmo que eu tentasse revidar, quem sairia perdendo seria eu”.
O SC disse que estabeleceu o que afirma ser um Fórum de Bem-Estar dos Trabalhadores “inédito”, o qual permite que os trabalhadores elejam um representante que, quando as empresas não cumprirem o estabelecido pelo Fórum, pode intervir, exigir melhores condições e alertar as autoridades.
Desde 2016, o SC disse que 69 empreiteiros foram desmobilizados, 235 empresas colocadas em uma lista de observação, e outras sete foram para uma lista negra. “Entendemos que sempre há espaço para melhorias”, acrescentou o comunicado.
‘Conhecimento e heroísmo’
O Catar, uma península menor que o estado americano de Connecticut e o menor anfitrião da Copa do Mundo da história, deve receber cerca de 1,5 milhão de torcedores durante o torneio de um mês, que começa no dia 20 de novembro. Já há relatos de preocupação com hospedagem para um número tão grande de visitantes.
Os holofotes estão, sem dúvida, sobre esse estado do Golfo, como tem sido o caso desde que foi controversamente premiado com o Mundial há mais de uma década – embora as autoridades do Catar tenham “negado fortemente” à CNN as alegações de suborno que cercaram sua candidatura.
Essa atenção trouxe reformas, desmantelando significativamente o sistema Kafala, que dá às empresas e aos cidadãos privados o controle sobre o emprego e o status de imigração dos trabalhadores migrantes.
No Catar, os trabalhadores migrantes agora podem mudar de emprego livremente sem a necessidade de permissão do seu empregador. Mas Knight acrescentou: “Outro aspecto do sistema Kafala, a acusação criminal de fuga, ainda existe, e isso, juntamente com outras ferramentas que ainda estão disponíveis para os empregadores, significa que no equilíbrio de poderes entre trabalhadores e empregadores o desequilíbrio permanece enorme”.
Knight afirmou que os salários não pagos ainda são um problema, já que o sistema de proteção salarial “carece de mecanismos de execução”. Ela também reiterou que os empregadores podem cancelar a identidade de um trabalhador com um “aperto de botão”, o que significa que eles correm o risco de prisão e deportação. Além disso, os comitês trabalhistas destinados a ajudar os trabalhadores estão com poucos recursos e “não têm a capacidade de lidar com o número de casos que chegam a eles”.
Ghimire concorda que houve algumas mudanças positivas nas leis trabalhistas, mas acrescentou que é “mais uma demonstração pública”.
“Muitos trabalhadores da construção civil estão intocados, então ainda há exploração acontecendo”, disse ele à CNN.
O funcionário do governo do Catar disse à CNN que ainda há trabalho a ser feito, mas que “a reforma sistêmica não acontece da noite para o dia, e mudar o comportamento de todas as empresas leva tempo, como é o caso de qualquer país no mundo”.
Vista do Estádio 974, que será uma das sedes da Copa do Catar / Photo by Matthew Ashton – AMA/Getty Images |
“Na última década, o Catar fez mais do que qualquer outro país da região para fortalecer os direitos dos trabalhadores estrangeiros, e continuaremos a trabalhar em estreita consultoria com parceiros internacionais para fortalecer as reformas e sua aplicação”.
A campanha #PayUpFIFA da Human Rights Watch (HRW) quer que o Catar e a Fifa paguem pelo menos US$ 440 milhões – uma quantia igual à premiação em dinheiro da Copa do Mundo – às famílias de trabalhadores migrantes que foram feridos ou mortos na preparação para o Mundial.
As famílias dos trabalhadores que morreram enfrentam futuros incertos, segundo a HRW, especialmente as crianças. Aqueles que sobreviveram e voltaram para casa, feridos ou enganados em relação a salários, permanecem presos em dívidas, afirmou a entidade, “com consequências terríveis para suas famílias”.
Ghimire disse que a compensação é fundamental, mas também é importante conscientizar o mundo sobre o que aconteceu para que este torneio se realizasse.
“As pessoas estão preocupadas com marcas de roupa e a carne que comem, mas e os megaeventos? Não é hora de perguntarmos como isso foi possível?”, questionou.
“Todos mundo assistindo deve saber a que preço isso foi possível e como os trabalhadores foram tratados. Os jogadores devem saber, os patrocinadores devem saber.
“Seria a mesma situação se fossem trabalhadores europeus morrendo no Catar? Se fossem trabalhadores argentinos, a Argentina estaria preocupada em jogar?
“Como são trabalhadores migrantes de países pobres do sul da Ásia, eles são invisíveis. Trabalhos forçados, a morte de trabalhadores, isso para realizar uma Copa do Mundo é inaceitável. Como fã de futebol, fico triste. Como advogado, fico realmente decepcionado”.
No início deste mês, o ministro do Trabalho do Catar, Ali bin Samikh Al Marri, rejeitou a perspectiva de um fundo de provimento judicial.
Um funcionário do governo do Catar disse que o Fundo de Apoio e Seguro dos Trabalhadores do país foi “eficaz em fornecer uma compensação para os trabalhadores e suas famílias”, com o fundo reembolsando os trabalhadores com mais de US$ 350 milhões (cerca de R$ 1,9 bilhão) até agora neste ano.
Em termos dos esforços do SC para garantir o reembolso das taxas de recrutamento, até dezembro de 2021 os trabalhadores haviam recebido US$ 22,6 milhões (R$ 123 milhões pela cotação atual), com um adicional de US$ 5,7 milhões (cerca de R$ 31 milhões) pagos pelas empresas, de acordo com a Fifa.
No mês passado, o secretário-geral adjunto da Fifa, Alasdair Bell, disse que “a compensação é certamente algo em que queremos avançar”.
Tem sido amplamente divulgado que a Fifa apelou às nações que participam da Copa do Mundo para se concentrarem no futebol quando o torneio começar.
A Fifa confirmou à CNN que uma carta assinada pelo presidente da Fifa, Gianni Infantino, e pela secretária-geral da entidade, Fatma Samoura, foi enviada em 3 de novembro às 32 nações participantes do Mundial, mas não divulgou o conteúdo. No entanto, várias federações europeias emitiram uma declaração conjunta dizendo que fariam campanha durante o torneio pelos direitos humanos, e por um centro para os trabalhadores migrantes e um fundo de compensação para eles.
O lema da candidatura do Catar em 2010 foi “Expect Amazing” (espere o incrível, em inglês). De muitas maneiras, a Copa do Mundo deste ano replicou essa máxima.
Como Natasha Iskander, da Universidade de Nova York, disse: “Uma das coisas que não é nada abordada na cobertura da Copa do Mundo e na cobertura desse enorme boom de construções é o conhecimento e o heroísmo dos trabalhadores.
“Eles levantaram edifícios que eram impensáveis para qualquer pessoa, incluindo engenheiros e designers, até que foram construídos. Eles realizaram atos de bravura que não são celebrados. Eles operaram em níveis de complexidade técnica e sofisticação que são incomparáveis. E, no entanto, sua contribuição para a construção da Copa do Mundo é raramente reconhecida, é minimizada.
“Eles são representados, de um modo geral, como explorados e oprimidos. E é verdade que eles foram explorados e oprimidos, mas eles também são os mestres artesãos que construíram esta Copa, e eles têm muito orgulho do que construíram”.
Sediar este Mundial, sem dúvida, colocou o Catar sob os holofotes globais. A questão é se o mundo vai gostar de assistir ao que os trabalhadores migrantes construíram, sabendo o verdadeiro preço dessa extravagância de bilhões de dólares.
Fonte: CNN