Desde a adoção do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, lançado pelo Governo da Bahia em 1992, a lógica da ação institucional esteve voltada a transformar o Centro Histórico numa espécie de shopping a céu aberto. Essa ação abriu portas para um processo violento de controle e expulsão da população negra, além da financeirização do solo ancorado na especulação imobiliária
O Centro Histórico de Salvador (CHS) está entre os principais destinos turísticos do Brasil e faz parte do conjunto de sítios históricos tombados como patrimônio da humanidade. No entanto, desde a década de 1990, a atuação conjunta do poder público segue priorizando incentivos aos empresários do ramo turístico-imobiliário, enquanto negam direitos fundamentais, como moradia digna e equipamentos públicos de saúde e educação à população local, majoritariamente negra. Essa situação evidencia as contradições e consequências do projeto político de cidade no qual o poder público aposta há pelo menos trinta anos.
Patrimônio da Humanidade
O tombamento do Centro Histórico de Salvador como patrimônio cultural da humanidade em 1985 ocorreu não apenas pela existência do conjunto arquitetônico barroco, símbolo da violenta ocupação portuguesa sobre o território brasileiro. Quando foi tombado, o CHS – que engloba Pelourinho, Maciel, Saldanha, Barroquinha e Passo – já era reconhecido nacionalmente como um território que abriga importantes símbolos do repertório político e cultural do povo negro em Salvador. Exemplos disso são a sede do bloco afro Olodum (1979), do afoxé Filhos de Gandhy (1949), os centenários mercados São Miguel e Santa Bárbara, a Igreja do Rosário dos Pretos e os artífices da Ladeira da Conceição da Praia, dentre outros símbolos que compõe esse patrimônio em sua totalidade.
Esses e outros elementos constitutivos do espaço urbano e da paisagem do CHS foram elaborados a partir das sociabilidades e territorialidades negras, que modulam as formas urbanas e estabelecem, a partir disso, novos usos e referências de lugar no território. De modo que casarões antigos que até meados do século passado pertenciam a feitores e escravocratas foram transformados a partir da ocupação da população negra em moradias populares, em espaços de luta e articulação política e em espaços de produção cultural e comunitária, elementos que demarcam a manutenção da população negra como necessária e indispensável ao território.
Esses elementos contêm fundamentos que, trazidos da África nos corpos negros, construíram o Brasil e deram origem aos terreiros de Candomblé, favelas, quilombos e bairros negros. Processos que evidenciam que a experiência territorial histórica e cultural da população negra nas cidades brasileiras é marcada pela insubordinação, insubmissão, resistência e luta. Também por isso, o CHS é um território em disputa.
Políticas Racistas de Ordenamento Urbano
No livro Racismo estrutural (2019), Silvio Almeida, intelectual e ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, evidencia que o racismo institucional ultrapassa a dimensão individual e comportamental da violência, e afeta a população negra de forma coletiva por meio da atuação das instituições. Estas, ao mesmo tempo, moldam a sociedade – para perpetuar os interesses dos grupos dominantes – e reproduzem os conflitos e contradições inerentes à manutenção dela.
Portanto, o racismo institucional é o processo que melhor define o direcionamento de práticas institucionais do poder público que por ação ou omissão violam direitos e ampliam as desvantagens das pessoas e territórios negros (e indígenas), e/ou ampliam os privilégios das pessoas brancas.
O racismo institucional afeta o Centro Histórico de Salvador por meio do conjunto de políticas institucionais violentas que resultam na falta de moradia digna; na violência e brutalidade policial, que atinge principalmente a juventude negra; na retirada dos vendedores e vendedoras ambulantes que não foram realocados após as reformas; com a retirada de serviços essenciais, como escolas públicas… Enquanto isso, o poder público direciona projetos de incentivos que, em suma, apenas as pessoas brancas conseguem acessar.
Desde a adoção do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, lançado pelo Governo da Bahia em 1992, a lógica da ação institucional esteve voltada a transformar o Centro Histórico numa espécie de shopping à céu aberto, mantendo o sítio arquitetônico colonial barroco e alterando o cenário de moradias populares e precárias para casarões que abrigariam lojas de alto padrão de consumo (SANT’ANNA, 2003).
Essa ação abriu portas para um processo violento de controle e expulsão da população negra, além da financeirização do solo ancorado na especulação imobiliária. Marcia Sant’anna (2003) avalia que o Programa de Recuperação expulsou aproximadamente 1900 famílias entre 1992 e 1999, período de execução das seis primeiras etapas do projeto. Essas famílias moravam acerca de três ou quatro gerações (10 a 40 anos) no território, mas por causa do baixo padrão de vida a que estavam submetidas, muitas aceitaram indenizações irrisórias que variaram entre R$ 900 e R$ 1.200, sem oferecer resistência (SANT’ANNA, 2003).
A maior parte das famílias foram encaminhadas para programas habitacionais fora do território, em Jardim das Margaridas e Coutos, conjuntos habitacionais sem infraestrutura adequada e serviços próximos. Figueiredo e Estevez (2021) afirmam que, até 2015, o Programa de Recuperação havia expulsado 4 mil famílias e que muitas delas foram direcionadas a bairros como São Caetano, Pau da Lima, Valéria e Subúrbio Ferroviário, áreas periféricas da cidade onde as famílias não possuíam nenhuma relação de pertencimento. Em troca, abandonaram sonhos, relações comunitárias de vizinhança, trabalho e o modo de vida.
Na sétima etapa, iniciada em 2000, foi prevista a inclusão de projetos de habitação de interesse social para atender às famílias em razão da forte pressão popular – encabeçada pela atuação de movimentos sociais, a exemplo da Associação dos Moradores do Centro Histórico (AMACH). Entretanto, mesmo com a assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) em 2015 entre o Ministério Público do Estado da Bahia e a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) – com a finalidade de obrigar a instituição a garantir moradia digna no território –, as famílias não foram atendidas, a expulsão em massa continua e comunidades inteiras já foram removidas e desarticuladas. São os casos da Chácara Santo Antônio – após tentativas de negociação com o poder público –, e da Rocinha, onde as famílias ainda esperam receber moradias no território.
Por outro lado, temos observado nos últimos anos a destinação de investimentos milionários por parte do poder público junto à iniciativa privada para realizar projetos urbanísticos de melhoria da infraestrutura local mas que não buscam responder aos anseios da população local e nem revolvem as questão inconclusas deixadas nas décadas anteriores. Em 2017, a Prefeitura de Salvador lançou o Programa Salvador 360, que previa um investimento de cerca de R$ 200 milhões em parceria com a iniciativa privada para a melhoria da infraestrutura e requalificação de casarões antigos do Centro. No entanto, o programa recebeu críticas da sociedade civil por não contemplar a população local na sua estratégia de revitalização e ampliar a valorização de áreas de interesse do mercado imobiliário, como a Rua Chile, onde foram inaugurados os hotéis de luxo Massa Fera e Fasano, logo após as reformas.
Igualmente, o programa Revitalizar (Lei n. 9.215/2017) permite que antigos proprietários de imóveis e empresários do ramo turístico e imobiliário, ao requalificar ou reformar imóveis, recebam benefícios fiscais, como isenção e redução de impostos (IPTU e ITIV[1]), incentivando usos como hotelaria, restaurantes gourmet, galerias e lojas de alto padrão de consumo.
Mobilização para Viver, Morar e Trabalhar no Centro
No ano passado, a Articulação dos Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador – que reúne seis movimentos e comunidades que lutam pelos direitos de moradores e trabalhadores da região, como Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Bahia (MSTB), Artífices da Ladeira da Conceição da Praia, Centro Cultural Que Ladeira é Essa?, Vila Coração de Maria e Associação de Moradores e Amigos de Gegê da Gamboa de Baixo – junto à AMACH e vendedores ambulantes, reuniram mais de trezentas pessoas durante a realização da audiência pública popular Viver, Morar e Trabalhar no Centro de Salvador, promovida em 19 de outubro de 2023 no Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA/UNEB).
Com o objetivo de rediscutir o território e cobrar das três esferas do poder público respostas sobre a situação das famílias afetadas pelas políticas de expulsão, a audiência reuniu os principais órgãos responsáveis pela condição atual do Centro de Salvador: como a Conder, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Fundação Mário Leal Ferreira, a Superintendência do Patrimônio da União na Bahia (SPU/BA), Secretaria Estadual de Turismo. Os movimentos sociais também convocaram aliados como o Centro de Estudos e Ação Social – CEAS, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, a Defensoria Pública do Estado (DPE/BA) e o Ministério Público do Estado (MP/BA).
A audiência foi marcada pela ausência do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), grande detentor de imóveis vazios no CHS, e pela falta de respostas coerentes e elucidativas dos órgãos públicos acerca dos questionamentos colocados pelos movimentos sociais sobre a ausência de programas habitacionais e políticas públicas voltadas a atender as demandas sociais, especialmente de habitação de interesse social.
Na mesma audiência foi criado o Núcleo de mediação de Conflitos Fundiários do Centro Histórico e Centro Antigo de Salvador, grupo de trabalho composto por representantes de movimentos sociais e territórios impactados pelas reformas, além de DPE, MP-BA, e os órgãos já citados acima, convidados para a audiência. Todos foram provocados a indicar representantes para compor o núcleo, porém apenas o Iphan, MP e DPE compareceram à primeira reunião do grupo, no dia 27 de novembro de 2023.
Em suma, as instituições do poder público já demonstraram a letargia e a falta de compromisso em atender às demandas da comunidade negra. Insistem em não ouvir, mas quem realmente vive e trabalha no território está falando exatamente a maneira mais viável de manter um imóvel de pé e de como preservar um patrimônio histórico: e isso se faz ocupando-o, mantendo-o habitado, com famílias, com crianças nas escolas e creches do bairro, com comércio local, com vida.
Apoena da Silva Ferreira é assessora do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), urbanista pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), mestranda no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFBA) e cofundadora e educadora comunitária na Cooperativa Ujamaa.
Catarina Lopes é assessora do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), educadora popular, arte-educadora e mestre pelo PPGAC/UFBA, na linha da Pedagogia do Teatro. Atua como assessora popular do CEAS junto a comunidades e movimentos sociais em Salvador.
Luciana Silveira de Mello é assessora do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), urbanista pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), mestra em Engenharia Ambiental e Urbana (MEAU/UFBA) e Educadora do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (GRUMAP).
Fonte: Diplomatique Brasil