Desde 2009, esses dispositivos não podem ser vendidos no país, apesar de serem facilmente encontrados em qualquer esquina. Confira argumentos pró e contra liberação.
Diferentes modelos de vape são expostos em vitrine de Melbourne, na Austrália — Foto: Sandra Sanders/Reuters |
A diretoria da Anvisa se reúne nesta sexta-feira (19) para discutir se mantém a proibição no Brasil sobre a comercialização dos cigarros eletrônicos (também chamados de vapes).
Desde 2009, esses dispositivos não podem ser vendidos no país. Apesar disso, são facilmente encontrados no comércio popular ou online e o consumo, especialmente entre os jovens, só aumenta, com sérias consequências para a saúde.
A agência deve manter a proibição e ainda incluir pontos para endurecer o cerco aos vapes, como a recomendação de campanhas educativas e reforço na fiscalização, incluindo no meio online, principal meio onde o comércio ilegal acontece.
A consulta pública realizada pela Anvisa como parte do processo de revisão da norma vigente apontou que a maioria dos profissionais de saúde disseram ser contra a liberação no Brasil. Considerando o público participante total, quase 59% disseram ser a favor de mudar a regra atual, incluindo a liberação geral.
Embora não fosse obrigatório, a agência resolveu rever os impactos da regra para considerar estudos mais recentes sobre os cigarros eletrônicos.
A discussão acontece em meio à pressão da indústria do tabagismo a favor da liberação. Enquanto a consulta estava aberta, o setor iniciou a campanha “Eu quero escolher”, com posts pagos em redes sociais, que estimulava a participação na consulta afirmando que o cigarro eletrônico era uma “alternativa potencialmente menos tóxica que o cigarro”.
O argumento principal dos defensores é que, ao contrário do cigarro comum, que contém tabaco e libera monóxido de carbono (que é cancerígeno), o vape é por vaporização e, por isso, menos prejudicial.
Só que a realidade é diferente, de acordo com especialistas. O cigarro eletrônico tem mais de duas mil substâncias, várias delas tóxicas e cancerígenas. (Leia mais abaixo o que dizem os dois lados no debate.)
Para a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia, Margareth Dalcolmo, a expectativa é a de que a norma da Anvisa seja mantida.
Não estamos surpresos com o resultado da consulta pública, mas isso não interfere no debate científico que se tem sobre o tema. Cada vez mais, os estudos mostram que não há benefício na troca do vape pelo cigarro comum e que ele é tão prejudicial à saúde quanto. Nossa expectativa é a de que a regra seja mantida pela Anvisa.
— Margareth Dalcolmo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia
A Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) argumenta ainda que a proibição atual não funciona, tendo em vista que os produtos estão circulando.
"Enfatizamos a urgência da regulamentação para que sejam estabelecidas regras claras e rígidas para a comercialização, prevenção do consumo por menores de 18 anos que, sob hipótese nenhuma, devem ter acesso a esses produtos; além de fornecer à sociedade informações corretas sobre os cigarros eletrônicos", disse em nota enviada após o resultado da consulta pública.
Veja o que diz quem é contra e quem é a favor
CIGARRO ELETRÔNICO X CIGARRO COMUM
O que diz quem é a favor da liberação: A indústria argumenta que os cigarros eletrônicos funcionam como "redução de danos" para quem já fuma cigarro comum. Ou seja, de que são uma forma menos prejudicial de acesso à nicotina para pessoas viciadas. Para isso, usam como base um relatório feito pelo King's College, do Reino Unido, que diz que vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum.
O documento chega a essa conclusão a partir de uma revisão de artigos publicados e de pesquisas feitas anteriormente por outros institutos com pessoas que usaram cigarro eletrônico, mas durante um curto prazo.
O que diz quem é contra a liberação: Os especialistas médicos refutam o argumento porque dizem que a análise não oferece base para concluir o risco 95% menor.
Essa classificação de risco é uma falácia que não tem qualquer evidência científica. Pudemos ver isso com a crise nos Estados Unidos com pessoas morrendo por doenças associadas aos vapes. Precisamos lembrar que é um dado que vem de uma indústria que, quando apresentou o cigarro tradicional, jurou que a nicotina não viciava. Como podemos confiar?
— André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer
O médico e coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB, Ricardo Meireles, explica que não existe redução de danos para o tratamento do tabagismo, que mata cerca de 400 pessoas por dia no Brasil. A única forma, ressalta, é cessar o uso de qualquer fumo.
“Não existe redução de danos no tabagismo. Estamos vivendo agora o que vivemos um século atrás, quando o cigarro começou a circular. No começo, as pessoas não sabiam que o cigarro fazia mal e foram muitas mortes até que soubéssemos a verdade. Hoje, o cigarro eletrônico está no mercado há poucos anos e já tem uma doença para chamar de sua, que é a evali. (Leia mais abaixo.) Não podemos deixar a história se repetir”, explica.
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REGULAMENTAÇÃO DOS CIGARROS ELETRÔNICOS
O que diz quem é a favor: A indústria alega que é preciso regulamentar para haver regras sobre o consumo e as pessoas pararem de consumir o produto clandestino.
“Somente a regulamentação poderá estabelecer requisitos sobre quais produtos poderão ser comercializados e prevenir o consumo de jovens que, sob nenhuma hipótese, devem ter acesso a esses produtos”.
O que diz quem é contra: Para a pneumologista Margareth Dalcolmo, existe uma regulamentação do cigarro eletrônico no Brasil, que é justamente a de 2009 sobre a proibição. Ela explica que, desde 2009, já existe uma regra da Anvisa proibindo a produção e comercialização dos dispositivos no país.
Segundo Dalcolmo, as entidades médicas têm unido esforços e reunido pneumologistas, cardiologistas, oncologistas e pediatras para endossar o coro contra qualquer mudança na regra.
Desde 2009, temos uma regulamentação feita pela Anvisa que proíbe a comercialização de qualquer produto que tenha tabaco aquecido e é essa regulamentação que nós defendemos. Pensar em mudar isso é um equívoco, uma inversão de valores enorme.
— Segundo Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina
CIGARROS ELETRÔNICOS X SAÚDE PÚBLICA
O que diz quem defende: A Abifumo, que representa as empresas que produzem cigarro, explica que o número de usuários dos dispositivos no Brasil quadruplicou nos últimos 4 anos e chegou a 2,2 milhões. Os dados são da pesquisa Ipec divulgada no fim do ano passado. Com o aumento, os fabricantes argumentam que seria necessário liberar o consumo para controlar quem tem acesso aos cigarros eletrônicos.
O que diz quem é contra: Os especialistas dizem que o número cresceu, mas é pequeno se comparado ao volume de fumantes no Brasil, cerca de 25 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Com isso, defendem que o melhor cenário é seguir proibido para frear a crescente.
O momento agora é barrar. Se tem 2,2 milhões de pessoas usando isso, a gente precisa agir para que elas não migrem para o cigarro convencional e impedir a expansão de novos fumantes. Agir diferente disso é cometer o mesmo erro do século passado ao liberar o cigarro convencional, que leva milhares de pessoas à morte.
— Ricardo Meireles, pneumologista e Coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB.
VAPE X IDADE DO FUMANTE
O que diz quem defende: A indústria explica que o produto é feito para pessoas adultas como contenção de danos ao cigarro e que optaram por não parar de fumar.
O que diz quem é contra: Os especialistas em saúde apontam que os aromas e sabores de frutas são um apelo aos mais jovens e os vapes são moda entre adolescentes. Nos Estados Unidos, que permite a comercialização dos dispositivos, uma das empresas fabricantes teve que pagar uma multa de R$ 2,3 bilhões por fazer propaganda de cigarros com apelo para menores de idade.
No Brasil, segundo a pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita em 2019, 60% das 52 mil pessoas entrevistadas disseram que usavam vape e que nunca tinham fumado antes. Ou seja, não são parte dos usuários de cigarro convencional, mas um novo público dependente de nicotina. Além disso, a maioria tinha até 24 anos.
Eu tenho atendido adolescentes com pulmões que parecem com o de uma pessoa de 90 anos. Cheguei a falar com uma escola particular de elite no Rio de Janeiro depois de atender pacientes que diziam fumavam no banheiro. São adolescentes dependentes químicos sem saber.
— Margareth Dalcolmo, membro da Academia Nacional de Medicina.
CIGARROS ELETRÔNICOS X DEPENDÊNCIA
O que diz quem defende: Os cigarros eletrônicos têm nicotina. A indústria diz que, apesar disso, ela é uma substância inofensiva, já que são o monóxido de carbono, o alcatrão e outros produtos químicos presentes no cigarro convencional que estão relacionados a danos à saúde.
O que diz quem é contra: A nicotina é uma substância altamente viciante e, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, não há quantidade segura para o consumo. Especialistas ressaltam que é por causa da nicotina que as pessoas usam o cigarro. Os vapes têm sal de nicotina, o que faz com que o composto seja entregue em concentrações até 20 vezes maiores no corpo.
"O cigarro eletrônico tem a nicotina em forma de sal, isso entrega mais nicotina e, por isso, tem um potencial muito mais viciante que o cigarro normal. Os relatos são de pessoas que começam com algumas baforadas e perdem o controle sobre o uso. Ou seja, a indústria diz que é mais seguro, mas na verdade está colocando a pessoa em uma armadilha para que ela se torne dependente química”, diz André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer.
Margareth Dalcolmo alerta que a quantidade de nicotina é preocupante também para adolescentes.
Esses dispositivos têm uma concentração de nicotina muito alta. Com sabores e aromas, eles chegam nos adolescentes, que são muito mais impactados por esse alto teor de nicotina. Os vapes têm criado uma legião de viciados muito precoces.
— Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina
Arnaldo usou cigarro eletrônico por nove meses, teve evali e passou 43 dias na UTI — Foto: Arquivo Pessoal |
Evali: a doença causada por vapes
Apesar de ainda não existirem indícios no médio e longo prazo sobre a segurança dos vapes, em menos de duas décadas dos dispositivos no mercado, os cigarros eletrônicos já deram origem a uma doença específica, com estragos devastadores: uma lesão pulmonar que pode levar à morte em um curto espaço de tempo, a evali.
A doença foi descrita primeiro nos Estados Unidos, depois de um surto de jovens sendo internados com lesões pulmonares em 2019. Só no país, foram cerca de 70 mortes, segundo o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), órgão de saúde norte-americano.
O médico pneumatologista Felipe Marques, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, publicou um artigo sobre a doença após atender uma paciente com uma pneumonia que se repetia sem explicação até descobrir que se tratava de um caso de evali.
O vape tem substâncias tóxicas que agridem nosso pulmão, então ele responde tentando evitar o agressor recrutando células do sistema imunológico que podem ‘machucar’ nosso sistema pulmonar causando lesões.
— Felipe Marques, pneumatologista
No Brasil, nove casos de evali foram registrados de 2019 a 2020, segundo a Anvisa. No entanto, a SBPT alerta que a doença é subnotificada.
O motivo é que, no Brasil, a notificação de casos não é compulsória. Essa é uma demanda da classe médica para ter uma real dimensão do problema no país.
Fonte: G1