Influencers ganham milhões de visualizações com vídeos que mostram ajuda a pessoas em supermercados e nas ruas

Fenômeno não acontece só no Brasil. De um lado, há quem defenda o incentivo a fazer o bem; do outro, especialistas em direitos humanos criticam exposição de pessoas em situação de vulnerabilidade.


Vídeos com ajuda a pessoas em mercados ganham milhões de visualizações

Uma câmera se aproxima de uma pessoa que está pedindo dinheiro para comprar alimentos em um supermercado. Quem está filmando pergunta: “Topa entrar e comprar tudo o que você quiser?”

A gravação acompanha o indivíduo selecionando, emocionado, os produtos nas prateleiras, e termina com ele agradecendo imensamente pelo auxílio.

Esse enredo, com variações, tem se multiplicado nas redes sociais. Os vídeos produzidos a partir de cenas como a descrita acima alcançam milhões de visualizações para os influencers que os produzem.

Foi encontrado no Instagram e no TikTok, sete produtores de conteúdo brasileiros que criam vídeos com esse perfil, de vários locais do país, como Curitiba, São Paulo e Maceió. Todos são homens e têm entre 1 milhão e 6 milhões de seguidores (leia mais abaixo). Outras páginas replicam esse material, ampliando o alcance.

O fenômeno não acontece só no Brasil. Existem vídeos semelhantes em perfis do México, de Portugal e dos Estados Unidos. O maior youtuber do mundo, o americano Mr Beast, dedica uma seção de seu canal a ações do tipo e afirma já ter dado mais de 20 milhões de refeições a pessoas necessitadas. O youtuber também produz vídeos em que mostra doações de alto valor, como dar uma casa de gorjeta a um entregador de pizza.


Em uma versão brasileira, um influencer entregou, de presente, uma moto ao entregador.

'Quero que este gesto se multiplique', diz influenciador

Com a divulgação dos vídeos, os produtores de conteúdo dizem que querem influenciar positivamente quem assiste.

“A ideia de divulgar essas ações nas redes sociais tem o propósito de inspirar e motivar outras pessoas a fazerem o mesmo. Quero que esse gesto se multiplique”, disse Felipe Martins, um músico de Maceió que tem as redes sociais como principal fonte de renda.


Perguntado sobre quanto já doou a terceiros, ele não revelou.

“Nunca me interessei em calcular esses valores, pois para mim o gesto de carinho e a ação solidária estão acima de tudo”.

Professor de educação física em Natal, Leandro Pessoa contou que inicialmente ajudava pessoas nas ruas sem filmar. Mas, ao registrar as ações e divulgar, passou a ver o impacto que causava.

"Recebi muitas mensagens lindas dos meus seguidores falando que, através do vídeo, eu mudei o dia deles. Pessoas com depressão, ansiedade, que se sentem outras depois que assistem aos meus vídeos".

Pessoa disse ter gastado mais de R$ 20 mil nos vídeos de ajuda, e que o dinheiro que ganha vem sobretudo das aulas que dá, e não da monetização nas redes.

Empresário e influencer de São Paulo que mescla os vídeos de ajuda com outros de culinária, Alex Granig afirmou já ter doado mais de R$ 100 mil – e outros R$ 500 mil por meio de vaquinhas virtuais que promove em seus canais.

"Hoje a minha renda é diversificada, tenho imóveis, ações, criptomoedas e diversos canais na internet, além do canal Alex Granig que é de ajudas sociais, sou criador de diversos canais como Nayara Granig (a mulher dele), Bruxinha das Receitas, entre outros em diversos idiomas", descreveu o influenciador.


" Idolatria, cancelamento... 'Tudo isso vira engajamento', diz psicanalista

“Minha intenção com os vídeos não é expor a vida de ninguém, mas sim ajudar e inspirar você que tá assistindo a fazer o bem pelo próximo também”, justificou-se, em uma postagem, o influenciador Emerson Falkevicz, conhecido como “Emerson Resolve”, de Mafra (SC).

Para o psicanalista e analista de cultura e comportamento Lucas Liedke, este formato de conteúdo, de fato, pode passar uma mensagem positiva, como a de "inspirar algumas pessoas a também fazerem doações para quem está em situação de vulnerabilidade" ou a de "se envolver em algum tipo de trabalho social”.

Contudo, há também quem critique a exposição dos beneficiados, em comentários nas próprias contas dos influenciadores.

Liedke entende que este tipo de conteúdo pode instigar diversas reações - todas elas, entretanto, podem se traduzir em interações com as contas dos influenciadores nas redes sociais.

“É um tipo de conteúdo que é alegre, mas é triste, parece correto, mas parece errado, e isso gera afetos conflitantes em quem está assistindo. Faz as pessoas quererem se posicionar contra ou a favor, gera discussão, desperta idolatria ou tentativas de cancelamento, e tudo isso vira engajamento [nas redes]”.


Ações sociais gravadas podem parecer atitude nobre, mas não são, diz socióloga

Segundo a doutora em serviço social e mestre em sociologia Jucimeri Isolda, os influencers se beneficiam financeiramente com a projeção desses vídeos nas redes. Para ela, há uma exploração da pobreza das pessoas que recebem ajuda.

“É explorada a sua condição de indignidade, de vulnerabilidade extrema, de situação de pobreza, de precarização e de desproteção. Pode parecer uma atitude nobre, mas não é”, afirmou. “Subalternidade é o que tem de pior na condição da vulnerabilidade, porque é essa falta total de protagonismo e autonomia até para dizer ‘não, não quero participar disso’”


É permitido filmar essas pessoas sem consentimento?

A advogada Luciana Marin Ribas, doutora em direitos humanos pela USP, ressaltou o direito à imagem das pessoas filmadas.

"Se você filma alguém e veicula sua imagem, é necessário ter autorização expressa dessa pessoa", explicou.

Os influencers que responderam à reportagem, Felipe Martins, Leandro Pessoa e Alex Granig, afirmam que solicitam a autorização de imagem de todas as pessoas que aparecem nos vídeos.

Emerson Falkevicz (conhecido como "Emerson Resolve"), Willian Braz (conhecido como "Willian da Bondade"), Iago Felipe (conhecido como "Iago Milionário") e Derick Silverio não responderam aos questionamentos do g1.


Idosa ganhou R$ 500 de influencer e R$ 600 de homem que não a filmou

Isa Nascimento dos Santos, de 74 anos, ou dona Isa, como é conhecida, mora sozinha em uma casa na Zona Leste de São Paulo. Ela é de Jequié, na Bahia, e chegou à capital paulista aos 18 anos.

Trabalhou a maior parte da vida como empregada doméstica e cozinheira, e, nos últimos dois anos, passou a vender panos de prato na rua. Ela tem o sonho de, antes dos 80 anos, voltar para Jequié e comprar sua primeira casa própria.

“A gente fica cansada, mas não pode desistir. Eu não tenho mais idade para isso, mas eu preciso [trabalhar]”.

Neste ano, Isa recebeu ajuda do influencer Willian Braz (“O Cara da Bondade”), enquanto estava sentada na calçada com suas mercadorias.

O influenciador a abordou e deu R$ 500 – valor que a idosa leva, em média, uma semana para conseguir com as vendas. O vídeo da ação no Instagram de Willian rendeu mais de um milhão de visualizações.

Isa relatou que não sabia que estava sendo filmada e que não foi solicitada sua autorização. No entanto, ela disse que não vê problema nisso e não se incomodou em ver sua imagem na internet.

“Deus tem posto muitas pessoas boas no meu caminho, outras pessoas também fazem isso”, afirmou.

Ela contou que essa foi a segunda maior ajuda que já recebeu. Em outra ocasião, um homem que passou na rua e pediu seus dados fez um depósito de R$ 600 em sua conta. Neste caso, o gesto não foi divulgado.


Pegadinhas, sorteios e até exigência de ficar pelado

Os vídeos apresentam uma variedade de abordagens. Enquanto alguns influenciadores simplesmente documentam a doação, outros condicionam o auxílio a pegadinhas e jogos de alternativas. Veja abaixo:

É o caso de Iago Felipe, que se denomina “Iago milionário” nas redes. Em um vídeo, ele diz a um menino em uma loja de brinquedos: “Se você não falar no microfone, eu compro o que você quiser. Entendeu a brincadeira?”. A criança, então, responde com gestos, "e ganha o direito de escolher os itens da loja.

Em outra situação, o influenciador Willian Braz aborda uma idosa na rua e oferece: "Dez reais ou girar a roleta?". Na roleta, a senhora tem a chance de ganhar até R$ 150 ou não ganhar nada.

Num outro vídeo, Derick Silvério desafia dois grupos a montar quebra-cabeças e realizar gincanas -- pelados. O prêmio final é de R$ 1 milhão de reais. “[Você] Se perdeu no conteúdo, mano, antes você ajudava as pessoas sem humilhar elas”, disse um seguidor em um comentário.

Há ainda dois produtores de conteúdo, Emerson Falkevicz e Willian Braz, que promovem sorteios de carros de luxo como BMWs em suas páginas.


Esse tipo de sorteio precisa seguir regras:

deve ser autorizado pelo Ministério da Fazenda, e só pode ser feito por empresas ou organizações da sociedade civil, e não por pessoas físicas;
a venda de números só pode ser feita por instituições filantrópicas que queiram arrecadar fundos.

Os sorteios promovidos pelos dois influenciadores não informam a instituição que receberá o dinheiro ou o número de registro no governo federal.

O g1 perguntou ao Ministério da Fazenda se as empresas Emerson Falkevicz, ligada ao influenciador, e Lorenza Empreendimentos e Desenvolvimento Pessoal Ltda., apontada como organizadora dos concursos de William Braz, tinham autorização para a realização de promoções comerciais. A pasta negou.


Fonte: G1


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