Fala aconteceu durante audiência na Vara de Família de Vitória e promotor alega que pode ter havido "ruído de comunicação"; esteticista era vítima de violência doméstica
Sede do Ministério Público do Espírito Santo, em Vitória. (Carlos Alberto Silva) |
De acordo com o Fordan, a mulher tem uma medida protetiva contra o ex-companheiro, após ter sobrevivido a uma tentativa de feminicídio. Segundo a denúncia do programa de extensão da Ufes, o áudio (ouça acima) foi gravado na hora da audiência, ocorrida no dia 20 de março, e o promotor Luiz Antônio de Souza Silva teria constrangido a mulher fazendo comentários sobre a quantidade de filhos que ela tem, insinuando que, por ter cinco filhos com o ex-companheiro, deveria voltar a morar com ele.
A denúncia
A mulher de 41 anos é esteticista e tem sete filhos, sendo 5 com o ex-companheiro, que é eletricista e pedreiro. A vítima é assistida pelo Fordan desde 2014. O portal g1 conversou com a coordenadora do programa de extensão da Ufes, Rosely Silva Pires.
De acordo com Rosely, a vítima morou com o ex-marido durante 20 anos e contou que foi agredida diversas vezes e tinha medidas protetivas contra ele. Segundo a coordenadora, a denúncia aponta que a mulher procurou o Fordan no dia 9 de maio e fez o relato sobre o que aconteceu na audiência. Em um dos áudios utilizados na denúncia, o promotor comenta sobre o número de filhos que o casal tem. Veja, abaixo, um trecho da gravação.
'A mãe tem quantos? Tem cinco com ele', pergunta o promotor.
'Tenho uma mais velha, de 22 anos e um nenezinho agora', diz a mulher
'O mais velho é com ele é? Gente, agora eu vou falar assim, vocês com cinco filhos juntos, hein, doutora? Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos, né?', diz o promotor
'Deus me livre, Deus não deixou, o que tinha que dar já deu', comentou a mulher.
O promotor continua a conversa e segue afirmando sobre a quantidade de filhos.
"Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá? Vocês... É, porque todo mundo é livre. Mas olha a consequência... os filhos depois crescem, gente. Os filhos precisam. Então precisa do ambiente mais... porque, assim, a questão única não é só o dinheiro. A questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem", comentou o promotor.
Após a audiência, a mulher conseguiu a pensão alimentícia para os filhos, mas disse ao Fordan que se sentiu humilhada com as falas do promotor. "Eu morei 20 anos com meu marido. O que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico. Apesar que a gente tem que debater com ex-marido e chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para promotor. Aí a gente sai de lá como lixo, né? Fica humilhada mais ainda. A gente denuncia, a gente vira chacota, e aí o que acontece? A gente fica calada e volta para casa", apontou a mulher na denúncia.
Após o relato da mulher, o Fordan disse ter denunciado o promotor ao Conselho Nacional de Direitos Humanos e ao Conselho Nacional do Ministério Público, no dia 29 de maio, por violência institucional. Esse crime ocorre quando o agente público submete uma vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a situações que a façam reviver situações de violência ou de constrangimento sem necessidade
O Conselho Nacional do Ministério Público disse que não recebeu nenhuma representação referente a esse caso. O Ministério Público do Espírito Santo (MPES) informou, por nota, que não tomou conhecimento dos fatos relatados e não teve acesso ao áudio mencionado. Disse ainda que não recebeu notificação do CNMP.
O promotor Luiz Antônio de Souza Silva disse, por meio de nota, que não vai comentar sobre o caso por se tratar de uma audiência ocorrida em segredo de Justiça. Silva também acrescentou que o aflige pensar que a sua atuação "possa ter gerado eventual desconforto, certamente advindo de algum ruído de comunicação, que poderia ter esclarecido a respeito, instantaneamente". Veja a nota, na íntegra, no final desta reportagem.
'MP deve zelar pelos direitos fundamentais", diz PGJ
Na quarta-feira (5), em entrevista à jornalista Fernanda Queiroz, na CBN Vitória, o Procurador Geral de Justiça, Francisco Berdeal, afirmou que ficou sabendo do caso pela imprensa e que não pode se manifestar, já que, na condição de PGJ, pode vir a ser juiz de uma eventual representação disciplinar contra o colega.
"O que eu posso dizer à sociedade é que o Ministério Público tem o dever de zelar pelos direitos fundamentais das pessoas. Nós temos na nossa instituição unidades preparadas para a defesa dos direitos fundamentais e para fomentar, por exemplo, a proteção dos direitos humanos", disse Berdeal.
Despreparo em lidar com mulheres vítimas de violência
Segundo Rosely Silva Pires, do Fordan, o que aconteceu na audiência é o retrato de um cenário que mostra o despreparo em lidar com mulheres vítimas de violência.
"O que aconteceu é muito sério. Ela sai da audiência destratada com o promotor. Isso é uma tipificação muito detalhada que o processo de violência psicológica que as nossas mulheres pretas têm passado com essa ausência diante de autoridades que ainda não entenderam a íntegra da Lei Maria da Penha", pontua a coordenadora.
Outro ponto levantado pela coordenadora é o fato de o promotor ressaltar a quantidade de filhos que o casal tem. "A própria Constituição vai trazer que a questão do controle e planejamento familiar é direito da família. No caso da mulher, ela não pode sofrer qualquer tipo de coerção por causa dessa questão do planejamento familiar", relata a coordenadora.
O que é violência institucional?
Segundo o próprio Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a chamada “vitimização secundária” (ou violência institucional) tem especial gravidade, já que é causada pelos agentes públicos que deveriam proteger a vítima no curso da investigação ou do processo.
De acordo com a Lei nº 14.321/2022, violência institucional ocorre quando o agente público submete uma vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a "procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”. Os responsáveis pela prática podem ser punidos com detenção de três meses a um ano e multa.
Por ser praticada pelos órgãos oficiais do Estado, a vitimização secundária pode trazer uma sensação de desamparo e frustração ainda maior que a vitimização primária. Se a vítima tiver seus direitos violados ou a dignidade desrespeitada ao buscar amparo e proteção nos órgãos oficiais do Estado, esse fato precisa ser denunciado.
Aprovada em março de 2022, a norma alterou a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), acrescentando ao texto o artigo 15-A. O dispositivo diz que a pena pode ser aumentada em 2/3 se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização. Se o próprio agente público intimidar a vítima no curso do processo ou investigação, a pena prevista na lei poderá ser aplicada em dobro.
O que dizem o promotor e o MPES?
O promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva enviou um posicionamento por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES).
Posicionamento do promotor Luiz Antônio de Souza Silva
Sobre matéria noticiada em veículo de comunicação, que me tornou ciente de fatos relatados em decorrência de suposta gravação feita em audiência de que participei no exercício de minha atribuição institucional, não posso me manifestar especificamente quanto aos mesmos, publicamente, não exclusivamente por ainda não ter conhecimento do inteiro teor do que consta a respeito nas instâncias aventadas como provocadas no referido periódico, mas, também, em razão de se tratar de ato processual pertinente a ação de família, que, como tal, é revestida do chamado segredo de justiça.
No momento, o que posso transmitir é que, ainda mais enquanto membro do Ministério Público, me aflige bastante a ciência de que a minha atuação possa ter gerado eventual desconforto, certamente advindo de algum ruído de comunicação, que poderia ter esclarecido a respeito, instantaneamente, mesmo porque, seguramente, o possível faria para isso, já que não condiz com a forma como busco desempenhar minhas atribuições institucionais.
O MPES também se manifestou por nota. "O Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) informa que não tomou conhecimento dos fatos relatados senão por intermédio de notícias jornalísticas, não teve acesso oficial à integra do áudio ali mencionado e não recebeu notificação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O MPES ressalta que as audiências realizadas em Varas da Família correm em segredo de justiça, o que impossibilita o órgão de passar qualquer informação a respeito dos assuntos tratados ou situações ocorridas durante as audiências", diz o texto.
Fonte: A Gazeta