Anúncios da substância afirmam que ela 'é a esperança para o combate ao câncer'. Instituto Nacional de Câncer informou que 'produto' não tem registro, não pode ser vendido como medicamento e 'discussões acerca do assunto mostraram a inefetividade para o tratamento de câncer'.
Anúncio em rede social — Foto: Reprodução/Instagram |
Um site tem anunciado a suposta venda da fosfoetanolamina sintética, conhecida popularmente como "pílula do câncer", utilizando indevidamente a imagem de Paulo Peregrino, paciente que entrou em remissão da doença com o tratamento Car-T Cell. Ele nunca fez uso da substância, que não tem comprovação científica de segurança nem de eficácia.
O caso de Paulo, de Niterói (RJ), ganhou repercussão nacional quando ele se tornou o 14º paciente tratado pela terapia com células do próprio corpo e modificadas em laboratório em São Paulo. Ele tratava um linfoma havia 13 anos e estava prestes a receber cuidados paliativos.
A foto usada pelo site sem o conhecimento do paciente foi divulgada na primeira reportagem do caso revelado pelo g1 em 29 de maio de 2023. Paulo aparecia ao lado de Vanderson Rocha, médico e professor titular de hematologia e terapia celular da Faculdade de Medicina da USP. O profissional esteve à frente do caso.
“Descobri por acaso [um dos sites da 'pílula do câncer]. Estava olhando meu Instagram e apareceu sobre 'pílula do câncer'. Resolvi olhar e me senti espantado com uma foto minha com o doutor Vanderson. Foi colocado um depoimento sem autorização com requinte criminoso, porque é um falso depoimento", disse Peregrino ao g1.
Os anúncios afirmam que a "imuno fosfo é a esperança para o combate ao câncer" e que seria "sem tratamento doloroso, sem queda de cabelos, sem enjoo ou ânsias". Ele promete também a prevenção de doenças, "inclusive o câncer". O anunciado aponta que "estudos sugerem potencial na ativação do sistema imunológico contra o câncer".
"Acho um verdadeiro absurdo colocar uma foto minha com o paciente com contexto diferente para estimular o comércio de uma droga que não tem validade científica nenhuma. Confio em medicamentos que têm estudos clínicos demonstrando eficácia e a não toxicidade", comentou o médico Vanderson Rocha.
Outra imagem destacada é de um idoso de Sorocaba, no interior de São Paulo. O depoimento diz ser de Anselmo Valente, do Rio de Janeiro. A foto dele com a esposa foi publicada também pelo g1 em 29 de janeiro de 2023 e trazia a história de um casal que se casaria na igreja após estar junto por mais de 60 anos.
Fotos usadas sem autorização em site — Foto: Reprodução |
Foi identificado dois sites que divulgam a substância para a suposta venda. Um dos endereços eletrônicos tem o CNPJ da empresa America Nutrition, de Santos, no litoral paulista. Segundo o registro na Junta Comercial de São Paulo, ela foi aberta em 2009 com o nome de Central Santista Comercial para o comércio de madeira, material de construção e ferragens.
A mudança de nome foi em maio deste ano, assim como a atividade econômica, que passou para "comércio varejista de produtos alimentícios". O g1 entrou em contato com a defesa de um dos sócios para entender se eles são os donos do endereço eletrônico e produtores do conteúdo, mas não houve retorno até a última atualização desta reportagem.
Anúncios de venda do composto feitos em nome da America Nutrition no Instagram apareceram para o repórter como sugestão do algoritmo da rede social ao menos quatro vezes. A Meta, dona do Instagram, não encaminhou posicionamento até a última atualização desta reportagem.
Um segundo site também anuncia a venda da substância e informa, como contato, um telefone dos Estados Unidos, assim como o endereço da empresa.
Sem registro nem eficácia
O Instituto Nacional de Câncer (Inca) informou que a fosfoetanolamina não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e não pode ser comercializada no Brasil como medicamento.
De acordo com o diretor-geral do Inca, Roberto Gil, discussões anteriores acerca do assunto já mostraram a falta de eficácia do medicamento para o tratamento de câncer.
"A sua utilização como suplemento nutricional, eventual, não deve ser considerada como uma ferramenta para o combate à doença."
Site que anuncia suposta venda do produto — Foto: Reprodução |
A Anvisa reforçou que a "fosfoetanolamina não foi registrada como medicamento no país e, dessa forma, uma vez que não há comprovação de segurança e eficácia, não pode ser importada, manipulada, comercializada e divulgada". Também não há medicamentos nem alimentos registrados com o composto no país nem houve, até a última atualização desta reportagem, solicitação de registro de medicamento ou alimento com esta substância.
Além disso, a nota informa que a "importação de produtos acabados sujeitos à vigilância sanitária, realizada por pessoa física diretamente e destinada a uso próprio e individual, está dispensada de autorização pela autoridade sanitária, contudo, deve observar as normas sanitárias vigentes (o que inclui a apresentação de uma prescrição médica compatível com o produto importado)".
"Assim, desde que a importação por pessoa física ocorra em quantidade e frequência compatíveis com a duração e a finalidade de tratamento, ou que não caracterize comércio ou prestação de serviços a terceiros, é permitida."
"No entanto, cabe esclarecer que como no Brasil não há medicamento registrado à base dessa substância, assim como ela não é autorizada para uso em suplementos alimentares no Brasil, essa substância não teve a sua segurança e eficácia avaliadas e comprovadas pela Anvisa, podendo causar reações adversas inesperadas. Assim, o seu uso é de responsabilidade do usuário e do profissional prescritor", informa a agência.
Já a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) destaca que pacientes e familiares frequentemente recebem propostas de tratamentos que não são respaldados pela comunidade científica.
"Vivemos uma grande crise em relação a essas supostas 'pílulas do câncer' que são amplamente divulgadas sem fundamento científico, causando impacto significativo na população e levando pessoas a buscarem essas medicações ou substituírem seus tratamentos."
"Substituir terapias comprovadas por alternativas sem evidência científica pode colocar o paciente em risco de vida e de toxicidade", complementa a entidade.
A 'pílula do câncer'
Dois endereços de venda do composto citavam a Universidade de São Paulo. Procurada, a USP afirmou que "não tinha e continua não tendo qualquer responsabilidade na produção da substância".
Em 2016, o produto chegou a ser testado pelo governo do estado. Paulo Hoff, então diretor do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo), divulgou que 72 pacientes tinham sido incluídos no estudo com a substância.
A eficácia foi testada para tumores na cabeça e pescoço, pulmão, mama, colo uterino, próstata, pâncreas, estômago, fígado. Dos 72, 59 tiveram reavaliações e 58 não apresentaram resposta considerada objetiva pelos médicos. Apenas um caso, de um paciente com melanoma, câncer de pele, teve redução do tumor, mas os médicos não sabem se foi por ação da pílula ou por outro motivo.
Em março de 2017, o Inca anunciou que decidiu suspender a inclusão de novos pacientes nos testes clínicos com o composto devido à ausência de "benefício clínico significativo" nas pesquisas realizadas.
Ainda em nota, a USP apontou que a "produção da fosfoetanolamina era feita por um servidor técnico (químico), que foi cedido à Secretaria Estadual de Saúde, a pedido, para auxiliar na produção da substância com a finalidade de realização de testes para possível uso terapêutico".
A patente da fosfoetanolamina era de Gilberto Orivaldo Chierice, um professor aposentado que morreu aos 75 anos em 2019.
O assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal, em 2020. Por maioria, em outubro daquele ano, o tribunal julgou que era inconstitucional a lei sancionada em 2016 que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com câncer.
Fonte: G1