Casa 'sem endereço': saiba como funciona o abrigo para mulheres e filhos vítimas de violência doméstica no ES


Abrigo público já recebeu mais de 900 mulheres em risco iminente de morte. Contato com o mundo externo é cortado e prioridade para funcionamento da casa é sigilo absoluto sobre sua localização.

"Ele já me jogou escada abaixo, já me bateu. Já deu um pontapé nas minhas costas, eu caí e até hoje sinto dormência nos braços… Na verdade, eram poucos dias bem e muitos mal, né? Na última vez, ele pegou uma corrente e me deu uma coça de corrente. Quando a polícia chegou e me levou para a delegacia, eles me perguntaram se eu queria ajuda ou se eu queria voltar para casa. Aí eu falei que eu queria ajuda".

O relato acima é de uma mulher de 49 anos que por sete anos viveu uma relação abusiva e marcada pela violência com o ex-companheiro e hoje está acolhida na Casa Abrigo Maria Cândida Teixeira, no Espírito Santo.

Ela é uma das 13 vítimas que atualmente recebem atendimento no local. O abrigo público coordenado pelo governo do estado começou a funcionar em 2006 e, desde então, já acolheu quase 900 mulheres.

Nos últimos dias o g1 mostrou dois casos brutais que reforçam como esse tipo de alternativa pode fazer a diferença na vida das mulheres: o de Aline Ribeiro da Rosa, de 35 anos, em Aracruz, e o de Andrea Schimid Berger Ribeiro, de 33 anos, em São Roque do Canaã. Ambas foram mortas pelos companheiros nas regiões Norte e Noroeste do estado.


Endereço sigiloso

Casa ‘sem endereço’ já acolheu quase 900 mulheres vítimas de violência no Espírito Santo. — Foto: TV Gazeta

A confidencialidade da localização da casa é a principal regra para que ela exista, como explica a gerente de enfrentamento à violência contra a mulher da Secretaria Estadual das Mulheres (SESM), Fabiana Malheiros.

“Falamos que é um abrigo secreto, sem endereço. O sigilo é importante porque a mulher está em risco iminente de morte e alguns agressores não são presos na hora, estão sendo procurados. Acontece inclusive de a mulher chegar sem denunciar esse agressor. Então, manter o sigilo é importante para que não se encontre essa mulher”, disse.

A vítima que aceita ir para o local corta contato com o mundo externo, fica sem sair, sem celular e conversa com a família de maneira restrita e monitorada. Existe o momento para assistir TV, assistir a palestras e realizar atividades. A ideia é que ela fique protegida, se desintoxique da rotina de agressões, se sinta segura e receba ajuda para recomeçar a vida.

“Quando a gente recolhe os pertences das acolhidas, principalmente o celular, é para que ela realmente não tenha acesso com o externo, para que ela tenha um respiro. Muitas vezes, esse celular tem um localizador que o agressor coloca, ou então mensagens de ameaça chegam uma atrás da outra”, contou Fabiana.

Não existe tempo determinado para que a mulher fique na casa. A princípio, se trabalha com um período de 90 dias, que é avaliado caso a caso, junto à Segurança Pública e aos serviços de proteção, além considerar o sentimento de segurança da mulher acolhida.

A estadia no local não é compulsória. Se, eventualmente, a mulher não se adaptar à rotina e quiser sair do abrigo antes de completar os três meses, ela assina um termo e deixa o local.

O caminho para chegar a esse lugar parte das delegacias, dos Centros de Referência de Assistência Social (Creas) e dos Núcleos Margaridas, que encaminham os casos para a equipe multidisciplinar do abrigo, que está apto a receber vítimas 24 horas por dia.

"São mulheres que não têm para onde ir. Então, nós temos uma casa que é do estado, e a gente pode te levar. No atendimento inicial que é feito, nos Creas, por exemplo, eles perguntam: ‘Você tem a casa de um parente pra ir que você se sinta segura?’, ‘você tem algum outro lugar que queira ir para ter sua vida protegida?'. Se a mulher diz que não tem para onde ir, eles falam sobre a casa e que ela pode ser levada", explicou a secretária estadual das mulheres, Jacqueline Moraes.

Casa ‘sem endereço’ já acolheu quase 900 mulheres vítimas de violência no Espírito Santo. — Foto: TV Gazeta

Para Jacqueline Moraes, o importante é tirar as mulheres do risco imediato, reforçar as possibilidades de ajuda, sem desistir de acolher uma vítima.

“Muitas vezes, a família da mulher agredida ou violentada já desistiu, entende que já alertou sobre o agressor e que é ela que não larga… Essa naturalização do ‘ah, ela que gosta de apanhar’ tem que mudar. Nós precisamos entender que estamos em uma sociedade de machismo muito forte, em que quando a mulher não quer mais o relacionamento, o homem agride e mata”, falou a secretária.


Acolhimento dos filhos também é feito

Casa ‘sem endereço’ já acolheu quase 900 mulheres vítimas de violência no Espírito Santo. — Foto: TV Gazeta

A Casa Abrigo Maria Cândida Teixeira oferece às mulheres a possibilidade de irem com os filhos para o local. O número de crianças que já passaram pelo abrigo é maior que o de mães, mais de 1.100 ao longo dos anos de funcionamento.

"Têm mulheres que chegam com quatro, cinco filhos. Pouquíssimas mulheres não trazem os seus filhos, até porque eles também são ameaçados e vítimas da rotina de um relacionamento violento", disse Fabiana Malheiros.

No abrigo, as crianças em idade escolar recebem aulas de uma pedagoga, para minimizar os atrasos no ano letivo e tentar dar a ela de volta um hábito de convivência saudável.

“É muito sofrido, sabe? Porque a gente precisa dizer para elas o que aconteceu para saberem porque estão em um espaço que não é a comunidade dela, que não é a escola dela, que não tem os amigos”, apontou Fabiana.


Suporte na saída do abrigo

Quando chega o momento de deixar o abrigo, a acolhida pode ser enviada para a casa de um familiar, em outra cidade ou até mesmo outro estado. É dado suporte para o transporte da mulher e dos filhos, e o processo é acompanhado, monitorado, para saber se ela chegou até o destino.

É feito ainda contato com os serviços de proteção da localidade, como assistência social, pólos de capacitação, redes de ensino para os filhos, para reforçar a importância dessa mulher receber suporte e prioridade no atendimento, se necessário.

Para Fabiana Malheiros, tão importante quanto entender a necessidade de abrigar a vítima, é dar a essas mulheres a possibilidade para sair da casa em proteção.

“A nossa preocupação maior é que ela saia em segurança. Que ela não volte a encontrar o agressor e nem a sofrer ameaças. Isso é importante para nós. Então, a gente faz todo um estudo com ela de possibilidades de onde ela pode residir, onde ela pode ficar, para onde pode ir, entre outros”.

Segundo ela, existem mulheres que foram enviadas para outros estados, como Bahia, Ceará e Rio de Janeiro, para encontrar seus familiares. Algumas também foram incluídas em programas de proteção.

Além da saída em segurança, existe uma preocupação em oferecer à pessoa oportunidades para progredir do lado de fora e criar autonomia, principalmente, financeira, já que essa dependência é uma das que mais dificulta o afastamento das mulheres.

“A gente deseja que essa mulher se empodere a ponto de enxergar que ela pode trabalhar. Se ela quiser ter ou não uma relação, ela decide. Nós temos mulheres que passaram pela casa e que voltaram a estudar. Tá trabalhando numa creche, tá trabalhando em alguma coisa e tá cuidando de seus filhos, tocando sua vida. E que vive uma vida mais tranquila”, lembrou Jacqueline Moraes.

A mulher que deu depoimento no começo desta reportagem faz planos para quando sair do abrigo. "Eu quero ter minha casa para receber as minhas filhas, meu neto, minha família. Eu quero resgatar minha família de volta", contou.


Números violência

O Espírito Santo é o quinto estado do país com maior proporção de mulheres vítimas de violência praticada pelo parceiro ou ex-parceiro, segundo levantamento divulgado este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De acordo com o Painel de Monitoramento da Violência Contra a Mulher, da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), 26 mulheres foram vítimas de feminicídio no Espírito Santo em 2024, até 31 de julho. Em 2023, foram 35 casos ao longo de todo o ano.


Evolução mensal dos feminicídios no ES em 2024

Mês/Casos
Janeiro/ 2
Fevereiro/ 4
Março/ 2
Abril/1
Maio/ 6
Junho/ 5
Julho (até 31/07)/ 6
Total: 26

Fonte: Painel de Monitoramento da Violência Contra a Mulher/Sesp ES

Quase metade dos casos aconteceram na Região Metropolitana de Vitória. 46,15% dos crimes foram cometidos por armas brancas, 19,23% foram com armas de fogo e 34,62% foram cometidos com outros meios.


Fonte: G1 ES



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