Quem vai cuidar de você na velhice? Pergunta suscita debates e causa polêmica na vida e nas redes


Preparar-se para a última etapa da vida envolve planejamento financeiro, cuidados com saúde mental e corporal, ter bons relacionamentos interpessoais e um tanto de resiliência

Preocupação sobre cuidados na velhice, levantados pela atriz Paula Burlamaqui em programa do GNT, geraram debate — Foto: Shutterstock

A professora de literatura Flávia Cristina Gomes, de 51 anos, nunca quis ter filhos. “Essa escolha da mulher já é um tabu”, diz. Mas quando sua mãe, de 77, se acidentou recentemente ao sofrer uma queda e quebrar o fêmur, tudo mudou. Vivenciando os cuidados diários que uma pessoa idosa precisa nesse tipo de situação, vieram os pensamentos intrusivos e a preocupação constante: “E se fosse eu no lugar da minha mãe? E se eu viver mais 50 anos e ficar doente?”, passou a questionar-se. “Hoje olho para trás e penso que, talvez, pudesse ter tido filhos. Mas nunca falei sobre esse assunto com ninguém, e também nunca vi alguém falar sobre.” Os desabafos eram, até então, direcionados apenas à terapeuta. “Porque as pessoas julgam. Filho não é para cuidar da gente. Mas a lei diz o contrário”, reflete.

Além dos percalços com a mãe, a fala da atriz Paula Burlamaqui, de 57 anos, no programa “Santa ignorância”, do GNT, exibido no mês passado, trouxe à tona um assunto que muita gente parece evitar. Quem vai cuidar de nós quando envelhecermos? No ar, a atriz falou, com franqueza, sobre o “pesadelo” e o “pavor” que a decisão de não ser mãe causam em sua vida. “Fico pensando em quem vai cuidar de mim. Se eu tiver uma demência, alguma incapacidade... Não tenho filhos, fico aterrorizada. Se pudesse voltar no tempo, teria um filho só para garantir o bem-estar na minha velhice.” O trecho, exibido nas redes sociais, gerou polêmica e críticas. Alguns internautas afirmavam que ela era egoísta, porque ninguém deve ter filhos com esse objetivo. Os pais, na velhice, não deveriam ser um “fardo”.

“Falei com muita espontaneidade, porque acho natural. Não tenho ninguém. E minha irmã e eu fizemos isso com nossos pais. É um ato de amor cuidar de quem cuidou da gente”, explica Paula, em entrevista à ELA. “O que respondi, um a um, é que meus pais não teriam a mesma qualidade de vida sem a gente. Não foram um fardo.” Após o trecho viralizar, a atriz recebeu um telefonema que a deixou aliviada. A sobrinha, Bruna, de 25 anos, garantiu que a tia não deveria se preocupar. “Ela disse: ‘Dinda, eu vou cuidar de você’. Fiquei até mais sossegada.”

Para a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de “Velho é lindo!” (2016), o medo da solidão na velhice tem razão de ser. Pelo menos, no Brasil. Segundo ela, o culto à juventude e a falta de estrutura psicológica, institucional e familiar para o idoso no país não garante tranquilidade. “De um lado, há a cultura que reprime as mulheres que preferem não fazer procedimentos e envelhecer em paz. De outro, saber quem vai se responsabilizar por nós, quando ficarmos velhos, é a pergunta que mais escutei em minhas pesquisas”, afirma. Em países da Europa, como a Alemanha, local de estudo de Mirian, não se pergunta às mulheres quem vai cuidar delas na terceira idade. “Existem alternativas. As pessoas não são descartáveis, não ficam desemparadas. Lá, mesmo que você não tenha filhos, a preocupação é outra. Você pensa em ir para casas especiais de acolhimento, estar ao lado de amigos.”

Acreditar que os filhos serão sempre receptivos e disponíveis para os pais é uma ilusão, garante a antropóloga. Apesar de a Constituição Federal amparar os idosos — o artigo 229 diz que “os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, na carência ou na enfermidade”—, a realidade se mostra diametralmente oposta. Dados de um estudo divulgado em junho deste ano pela Fiocruz, comandado pela pesquisadora Cecília Minayo, afirmam que 60% da violência contra os idosos acontece dentro de casa. Dois terços dos agressores são filhos, que agridem mais do que filhas, noras ou genros, e cônjuges, nesta ordem. “Os idosos quase não denunciam, por medo e para protegerem os familiares”, garante Cecília.

Outros fatores responsáveis pela crença de que os filhos seriam os “salvadores” dos pais, principalmente das mulheres na terceira idade, são a religião e o machismo estrutural. “Eles têm um poder muito forte. Os homens quase não falam isso, porque quem cuida deles são as mulheres. Batalho para que elas enxerguem as prisões que criam para si. Mas, atualmente, muitas não querem mesmo ser mães, e esse número deve crescer ainda mais”, complementa Mirian Goldenberg.

Entra em jogo, então, o papel das mulheres, quase sempre vistas como as cuidadoras. “Somos socializadas para nos preocuparmos mais com os outros do que com nós mesmas, resultando em um estresse emocional”, aponta a terapeuta Rosângela Casseano, de São Paulo. Pensar no envelhecimento é também pensar na finitude, desencadeando a perda de controle. Em uma sociedade na qual a juventude é sinônimo de vitalidade e força, é difícil mesmo tocar no assunto, continua Rosângela. Mas não fugir do destino ajuda na construção de uma mentalidade que valoriza a saúde ao longo dos anos. “Porque se preparar para a velhice envolve não apenas os cuidados físicos, mas também o fortalecimento de laços sociais e o desenvolvimento de um senso de propósito”, enumera a terapeuta.

Com esse senso, consciência e um objetivo em comum, a sexóloga baiana Ive Maciel Oliveira, de 50 anos, projeta o futuro ao lado de 27 amigas que se conhecem há três décadas. Mãe de dois filhos adultos, quer, na velhice, estar ao lado do marido e do grupo. Uma delas, a arquiteta Doris Vilas-Boas, 48 anos, encabeça pesquisa sobre o envelhecimento saudável, priorizando segurança e autonomia. Tem em mente, ainda de forma embrionária, o projeto de um residencial para idosos em Salvador. “A ideia é cada uma ter sua casa, mas compartilhando áreas comuns, com farmácia, lavanderia, horta comunitária, cuidadores. Isso é muito comum nos EUA”, pontua Doris.

A sexóloga baiana Ive Maciel Oliveira, de 50 anos — Foto: Arquivo pessoal

“Vejo como algo positivo os amigos se juntarem. A ideia é que não percamos a autonomia.” Ive deixa claro não ter qualquer receio da velhice, com exceção da dependência física. Mas já vem preparando corpo e mente. “Faço musculação diariamente para poder me abaixar, aos 80 anos, e pegar algo no chão”, avisa. “Me planejo para ser produtiva e útil: gosto de cozinha, plantas, quero aprender a fazer crochê. Gostaria que que meus filhos viessem até mim para momentos prazerosos, não de pesar.”

No Rio, lares nestes moldes já são realidade: o Residencial Israelita RJZ, em Copacabana, abriga 30 pessoas, e o Cora Residencial, na Barra, possui espaço para até 130 residentes. Além da estrutura, têm alas sensoriais, estimulando a cognição, cozinha terapêutica, cinema e um setor específico para idosos com Alzheimer. “É uma mudança de paradigma, quebrando a cultura do asilo como conhecemos”, conta o arquiteto Flavio Kelner, da RAF Arquitetura, que desenvolveu o projeto dos espaços.

A arquiteta Doris Vilas-Boas — Foto: Arquivo pessoal

Fonte: O Globo



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