Livros infantis ganham versão em língua pomerana no Espírito Santo


Material, que agora é utilizado nas escolas de Santa Maria de Jetibá, faz parte do Programa Financinhas


Edukation, kultur un geschicht significam “educação”, “cultura” e “história” em pomerano. Essas palavras sintetizam bem as motivações do Programa Financinhas ao traduzir livros infantis de educação financeira do português para o pomerano.

A língua, que é tão diferente para os ouvidos que não a conhecem, resiste nos falantes, e principalmente, em Santa Maria de Jetibá, Região Serrana do Espírito Santo, e em municípios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rondônia. Nesses estados está concentrada a maior porcentagem de imigrantes da extinta Pomerânia, região antes localizada entre Polônia e Alemanha.

Em solo capixaba, tudo começou com Suelly Kurth, funcionária do Sicoob encarregada de expandir o projeto, que até então utilizava os livros apenas em contações de histórias. Uma conversa casual com sua irmã Simone Kurth, professora da rede pública de Santa Maria de Jetibá, fez surgir a ideia da tradução. Em 2020, a primeira tradução foi realizada e dois anos depois todos os livros já tinham tradução. Em 2023, os jogos também ganharam versão em pomerano.

Em Santa Maria de Jetibá, todas as escolas da rede pública ensinam a língua, o que significa que, além de ensinar sobre finanças, os livros também poderiam contribuir para a alfabetização e fortalecimento da cultura local.

“Na época, mostrei para ela o livro do 'Caio' (um dos quatro livros que integram o programa), e ela ficou encantada, dizendo: ‘Nossa, quem me dera ter um material como esse para desenvolver trabalhos em pomerano na sala de aula’. Isso ficou na minha cabeça e depois voltei para a cooperativa e perguntei à professora se seria possível fazermos a proposta de traduzir os livros. O retorno foi positivo”, contou Suelly.

Abraçada pela Secretaria Municipal de Educação e pelo Programa de Educação Escolar Pomerana (Proepo), a tradução aconteceu. Atualmente, os livros já estão sendo utilizados em 34 escolas de Santa Maria de Jetibá, beneficiando alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental. Antes de introduzir o material em sala de aula, os professores passam por uma capacitação online e também realizam workshops e, ao final, cada profissional precisa desenvolver três atividades com base no programa.


Escola Pomerana

Escola Pomerana em Santa Maria de Jetibá. Fernando Madeira

A versatilidade do conteúdo permite que diversas disciplinas usufruam dele. Em artes, por exemplo, os alunos fizeram cofrinhos inspirados nas histórias dos livros. Além disso, atividades lúdicas são aliadas ao material, como o uso do dinheiro falso, idas aos supermercados e simulações de situações cotidianas nas quais o dinheiro está envolvido.

“Na minha aula, fui criando jogos. Alguns professores usaram a ideia de ir ao supermercado, mas como minhas escolas são do interior, há dificuldade de sair e levar as crianças lá. Assim, nós brincamos na escola com dinheirinho falso e simulamos compras", explica Simone.

Além das escolas, os livros também têm gerado um impacto positivo nas famílias. “Minha filha ficou encantada, logo pegou o livro e começou a ler e fez questão de que toda a família ouvisse ela lendo. Ela amou”, contou Rosilda Schulz Reinholz, mãe de uma aluna beneficiada pelo projeto.

O programa também passou a fazer parte da vida de quem, justamente, idealizou as traduções. É o caso de Suelly.

Sobre a importância desse projeto para mim: além da realização profissional, é uma conexão profunda com minhas raízes. Aqui em Santa Maria de Jetibá, ele se destaca por ser trabalhado na língua pomerana. É gratificante ter tido essa ideia e ver os bons frutos que estamos colhendo

"Pessoalmente, sou pomerana e enfrento dificuldades para ensinar meus filhos a falar a língua, pois meu esposo não fala. Isso me faz refletir: quando olho para os livros, sinto dificuldade em ler, pois quando aprendi não havia escrita. Agora estamos oferecendo a outras crianças oportunidades que minha geração não teve. Este projeto é fundamental para mim, para o Sicoob, para a Secretaria Municipal de Educação, para os professores, e, acima de tudo, para as crianças e suas famílias.”


INICIATIVA NACIONAL

O material faz parte de uma iniciativa nacional do Instituto Sicoob, atendendo a diversos estados do Brasil. A autora das obras é a redatora publicitária Gabriela Pelli. No total, quatro livros integram o programa: "Caio Achou uma Moedinha", "Miguel, Aninha e Dedé Ganharam um Dinheirinho", "Margô e Davi Foram ao Mercadinho" e "Marina Esqueceu de Desligar a Televisão".

Em pomerano, os livros são intitulados, respectivamente, como: “Caio hät air klair nikelgild funne”, “Miguel, Aninha un Dedé häwl gild kreege”, “Margô un Davi sinnam klaine merkat hengåe”, “Marina hät de television uutmåken forgeete”.

A tradução para o pomerano inspirou outras traduções e agora os livros estão disponíveis em inglês e espanhol. Para acessar as obras, basta visitar a página do Instituto Sicoob na seção “Programas” e clicar em “Programa Financinhas”. Lá estão disponíveis três versões (português, inglês e espanhol), com a versão em pomerano prevista para breve. O material é gratuito e acessível a todos.

Escola Pomerana em Santa Maria de Jetibá. Crédito: Fernando Madeira


ESCRITA, AUTOESTIMA E IDENTIDADE

“Os livros destinados ao ensino primário serão exclusivamente escritos em língua portuguesa”. Esse é um trecho do decreto de lei nº 406, de 1938, que proibiu o ensino de qualquer língua que não fosse o português para menores de 14 anos, além de proibir livros em outras línguas nas escolas. A medida de Getúlio Vargas marcou seu primeiro governo ditatorial, o Estado Novo, que enxergava a imigração como um problema.

“A polícia de Getúlio Vargas confiscava bíblias, livros de oração, o que fosse. Virou quase um tabu falar pomerano. Então as pessoas começaram a ter vergonha, quando os pomeranos vão para a cidade costumam largar a língua, por acharem que é uma ‘língua da roça’. Elas não sabem do patrimônio cultural que carregam. E depois, na época da ditadura, continuou assim. Até a década de 80 era proibido falar pomerano nas escolas", explica Ismael Tressmann, pomerano e pós-doutor em linguística.

Quem lê o decreto, que ignora a pluralidade do país, pode imaginar a dificuldade de ensinar e aprender em uma língua secundária, nem sempre falada pelos pomeranos. Felizmente, como o próprio Programa Financinhas ilustra, a realidade mudou. Desde 2009, o pomerano é a língua cooficial de Santa Maria de Jetibá, sendo finalmente equiparado ao português.

Outras medidas foram tomadas para a reafirmação da identidade pomerana, como a criação do Programa de Educação Escolar Pomerana (Proepo) em 2005, com o objetivo de aproximar o pomerano das escolas e, consequentemente, facilitar o aprendizado.

Contudo, até então, não havia livros em pomerano acessíveis para uso nas escolas. Em 2006, publicou o Dicionário da Língua Pomerana.

Dicionário Pomerano, de Ismael Tressmann. Crédito: Acervo pessoal / Ismael Treesmann

“Logo se viu que era importante a literatura escrita. Inicialmente, eram exercícios no quadro, pequenas apostilas, livretos. Até que eu já vinha elaborando, 10 anos antes, o Dicionário Pomerano. Foi a chance de lançar, fiz pela SEDU em 2006 e então saiu o Dicionário Enciclopédico Pomerano Português”.

A partir daí, traduções e livros em pomerano tornaram-se mais comuns nas escolas de Santa Maria de Jetibá, embora o acesso a esses livros por pessoas de outras localidades ainda seja difícil.

Além da educação, a retomada e o reconhecimento do idioma também evitam a extinção da língua. Por ser uma língua minoritária, o perigo é iminente. Os Estados Unidos, por exemplo, receberam cerca de 300 mil pomeranos, uma quantidade dez vezes maior que o Brasil, que recebeu cerca de 30 mil. Por lá, o idioma foi absorvido devido à semelhança que possui com o inglês.

O reconhecimento da língua é também o reconhecimento da identidade do povo pomerano. Assim, o ensino, a descriminalização e a oficialização contribuem para a autoestima dessas pessoas. Isso é ilustrado pela fala de Jusimar Salomão, pai de Luís Vinícius, estudante de Santa Maria atendido pelo Programa Financinhas:

“Os livros são de muita importância porque, assim, nossos filhos e netos vão poder levar isso para o futuro, sabendo como foi a linguagem de seus antepassados, e que a linguagem pomerana é bonita como qualquer outra.”

Fonte: A Gazeta





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