Quando o remédio vira veneno


Quando as crianças são tomadas por fortes emoções, nossa tarefa não é distraí-las ou nos juntar ao caos, mas compartilhar nossa calma

Criança fazendo birra — Foto: Arte de André Mello

No Grupo de Trabalho da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, que une representantes de sete ministérios e vários especialistas de diversas áreas para criar um guia de orientação para famílias sobre o uso de telas por crianças e adolescentes, recebemos inúmeros estudos sobre o tema, publicados nos melhores periódicos de pediatria, psicologia e outras áreas. A maior parte deles aponta para danos significativos ao desenvolvimento, especialmente das crianças menores, causada pelo excesso de telas.

Um deles me chamou mais a atenção, pois trata de uma estratégia frequentemente utilizada pelas famílias para conter e atenuar (ou mesmo prevenir) uma crise de birra, em que a criança perde o controle, chora, bate ou se joga no chão. Um momento de terror para os pais, especialmente se acontece em público, como restaurantes ou shoppings.

É muito comum vermos um pai sacar imediatamente um celular do bolso e começar a mostrar vídeos de desenho animado para a criança. E de fato, o efeito é mágico: na maioria das vezes a criança interrompe a crise imediatamente, e fica hipnotizada pela telinha salvadora.

Mas o estudo canadense, com cerca de 300 crianças, publicado no respeitado periódico JAMA Pediatrics, mostrou que o uso de telas aos 3 anos e meio foi significativamente associado a uma maior propensão à raiva e à frustração um ano depois, aos 4,5 anos de idade. E por sua vez, os acessos de raiva e frustração aos 4,5 anos foram significativamente associados ao uso de tablets pelas crianças aos 5,5 anos, completando o ciclo vicioso. Em suma: o apelo à tela pode piorar as coisas mais tarde.

O uso de tablets e similares é geralmente uma atividade solitária das crianças, pois é usado pelos pais para realizar suas tarefas. E que, portanto, reduz a interação com o adulto, uma das bases do desenvolvimento na primeira infância. E isso pode prejudicar a aquisição de uma habilidade fundamental pela criança, que começa nesse período: a regulação das emoções. E o momento da birra é exatamente a hora onde esse aprendizado pode ser mais intenso. Ao evitar que ela tenha que lidar com suas emoções, estamos tomando um atalho perigoso.

As habilidades de regulação emocional vão se aprimorando ao longo dos anos pré-escolares, e começam pela observação e interação com os pais. Elas desempenham um papel crucial ao acolher e responder às emoções da criança com empatia, e ajudá-la a entender e nomear seus sentimentos. Esse processo é conhecido como co-regulação. O uso frequente de telas reduz as oportunidades de aprendizado proporcionadas por esses mecanismos.

Com o tempo, as crianças vão internalizando essas habilidades e aprendem a gerenciar as emoções de forma mais independente. Brincadeiras e outras interações sociais também contribuem no processo. Mas o uso frequente de telas dificulta também o desenvolvimento dessa regulação interna, reduzindo o contato da criança consigo mesma e com seus pares.

Para se conhecer e ganhar habilidades emocionais, a criança precisa enfrentar dificuldades e frustrações. Não se trata de demonizar o uso de telas – afinal, quem nunca mostrou um vídeo a uma criança chorando alto numa situação constrangedora? Mas fazer isso constantemente vai torná-la ainda mais irritada e com mais dificuldades de lidar com seus sentimentos e com as adversidades que a vida vai inevitavelmente trazer.

É bom lembrar as estratégias já trazidas aqui em colunas anteriores e no guia sobre birras publicado pelo GLOBO. Evitar a fome e o sono, remover do ambiente que gerou a crise, oferecer opções, usar a brincadeira e a fantasia, respirar junto com a criança, tocá-la ou contê-la carinhosamente, falar baixinho e olhar nos olhos são algumas delas. Quando as crianças são tomadas por fortes emoções, nossa tarefa não é distraí-las ou nos juntar ao caos, mas compartilhar nossa calma.

Fonte: O Globo





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