MORRE Jimmy Carter, o presidente americano que ganhou reconhecimento depois de deixar o poder


Democrata governou em período de turbulência, chocou-se com ditadura militar brasileira, foi derrotado por Ronald Reagan e ganhou relevância com centro que mediou crises pelo mundo

O ex-presidente dos EUA Jimmy Carter, morto neste domingo aos 100 anos, durante uma entrevista em 1996 — Foto: AFP

O ex-presidente americano Jimmy Carter (1977-1981), cujo mandato foi marcado pela segunda crise do petróleo, a invasão soviética do Afeganistão, a tomada de reféns na embaixada americana em Teerã e uma política em relação a ditaduras sul-americanas que pôs ênfase nos direitos humanos, morreu neste domingo, aos 100 anos. Há dois meses, ele havia votado nas eleições do país.

O democrata Carter foi um dos poucos ocupantes da Casa Branca que não conseguiu a reeleição, sendo derrotado pelo republicano Ronald Reagan. Fora do poder, ganhou reconhecimento por causa do trabalho de seu Centro Carter, na qual dedicou-se à mediação de crises e à promoção dos direitos humanos pelo mundo.

Jimmy Carter (à esq) e Ronald Reagan durante debate televisionado — Foto: AFP


Ascensão na política

Nascido em uma área rural do estado da Geórgia em 1924, James Earl “Jimmy” Carter Jr., ou Jimmy, como ficaria conhecido por toda sua vida, iniciou sua carreira na Marinha, onde se formou e trabalhou na operação de submarinos, inclusive nucleares. Com a morte de seu pai, em 1953, deixou as Forças Armadas e foi tocar o negócio de amendoins da família.

Nessa época, começou a atuar na política local, ocupando postos públicos e, no começo dos anos 1960, chegaria ao Senado estadual da Geórgia. Em 1970, elegeu-se governador, abrindo caminho para que, em 1974, apresentasse suas intenções de concorrer à Presidência. Pouco conhecido nacionalmente, aproveitou-se do clima de repúdio à política ainda presente após o governo de Richard Nixon para se colocar como um “rosto novo”.

Deu certo.

Nas primárias democratas, venceu com facilidade. Na eleição geral, quando enfrentou o incumbente republicano Gerald Ford, foi eleito com uma diferença pequena, mas suficiente para levar os democratas de volta à Casa Branca após um intervalo de seis anos.

O ex-presidente dos EUA Jimmy Carter recebendo apoio de eleitores durante as primárias americanas — Foto: Neal Boenzi/The New York Times


Presidência

Na Casa Branca, deparou-se com um país que vivia um período de forte crescimento econômico após a recessão da primeira metade da década, decorrente da primeira crise do petróleo e dos gastos com a Guerra do Vietnã, encerrada em 1975. Logo, no entanto, a segunda crise do petróleo, decorrente da Revolução Islâmica no Irã em 1979, faria a inflação disparar, com os juros subindo para 20% e desencadeando a crise da dívida externa em toda a periferia dos países capitalistas centrais.

As relações de Carter com o Congresso eram complicadas, muito por causa da construção de sua imagem como um outsider, pouco disposto a jogar pelas regras de Washington. Seu governo ficou marcado pela adoção de medidas de proteção do meio ambiente, como a criação do Departamento de Energia, com foco na eficiência energética, especialmente de combustíveis fósseis.

Carter foi um dos primeiros líderes a defender uma política de inclusão da comunidade LGBT e a sugerir a descriminalização da maconha — ideias que sofreram forte oposição no Congresso e em parcelas conservadores da sociedade.


Relação com a América Latina e o Brasil

As relações exteriores do governo de Carter foram marcadas por um dos momentos mais turbulentos da segunda metade do século passado. O democrata levantava a bandeira dos direitos humanos desde a campanha, e buscou aplicá-la ao longo de seu governo, trazendo um paradoxo ao Departamento de Estado: boa parte dos governos apoiados pelos EUA na América Latina, África e Ásia não era democrática, incluindo o Brasil, na época uma ditadura comandada pelos militares.

O ex-presidente dos EUA Jimmy Carter, morto neste domingo aos 100 anos — Foto: AFP

Nos seus primeiros meses na Casa Branca, Carter chegou a fazer críticas abertas ao então presidente Ernesto Geisel (1974-1979) e a pressionar pela liberação de um relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. Em meio a outros atritos, incluindo em relação à questão nuclear, Geisel suspendeu a cooperação militar com Washington e passou a acusar Carter de “intervencionismo” na América Latina.

A resposta foi descrita pelo então chefe do Conselho de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, como “hipersensibilidade” do governo brasileiro. No ano seguinte, em 1978, Carter visitou o Brasil, mas ao contrário do que esperavam opositores da ditadura e ativistas dos direitos humanos, não houve menção direta aos abusos cometidos pelos militares. Na véspera da chegada de Carter, o então chanceler, Antônio Azeredo da Silveira, afirmou que o líder americano “havia se convidado”.


Política externa

Ainda em 1978, Carter mediou os Acordos de Camp David, estabelecendo as bases para o acerto de paz entre Israel e Egito, a ser assinado no ano seguinte, rendendo o Nobel da Paz ao premier israelense Menachem Begin e ao presidente egípcio Anwar Sadat, que acabaria fuzilado em uma parada militar no Cairo, em 1981. Boa parte dos governos árabes jamais aceitou o pacto.

Carter restabeleceu as relações com a República Popular da China, dando continuidade a um processo iniciado por Richard Nixon, alguns anos antes, além de fechar um acordo sobre o funcionamento do Canal do Panamá, pondo fim a décadas de desentendimentos.

Com a União Soviética, adversário em um mundo ainda dividido, concluiu o SALT-II, que limitava testes de armas nucleares. Porém aquele mesmo Leonid Brezhnev com quem Carter se sentara em Viena para assinar o tratado nuclear ordenaria, meses depois, a invasão do Afeganistão. O presidente adotou uma posição firme e crítica a Moscou, que incluiu o fornecimento de armas para os mujahideen (que estão na raiz do movimento extremista islâmico) e o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscou em1980, com o apoio de outros 64 países e territórios. A invasão acabaria apenas em 1989, sendo decisiva para o fim da URSS.


Contudo, o mais dramático evento da diplomacia de Carter ocorreria em um país vizinho ao Afeganistão, o Irã, à época um dos maiores parceiros dos EUA no Oriente Médio, ao lado de Israel. Carter esteve em Teerã em um gelado dezembro de 1977, e se reuniu com o então xá Reza Pahlevi — meses depois, em 1979, ele seria deposto pelo movimento liderado do aiatolá Ruhollah Khomeini. Carter seria o último presidente dos EUA a visitar o Irã.


Sequestro em Teerã

Em meio à revolução, 52 diplomatas e funcionários da embaixada americana em Teerã foram sequestrados por um grupo de estudantes, mantidos reféns por exatos 444 dias e com seus dramas contados todos os dias na imprensa americana. A imagem dos homens e mulheres vendados, bandeiras americanas queimadas e discursos contra Washington marcou uma geração nos Estados Unidos, atiçando o antagonismo que até hoje permeia as relações entre os dois países.

Em uma ação desastrada, Carter ordenou uma ação para tentar resgatar os reféns em abril de 1980, que acabou com oito militares mortos no deserto iraniano. Em novembro de 1980, o republicano e ex-astro de filmes de filmes de faroeste Ronald Reagan teria uma das mais expressivas vitórias em uma eleição presidencial: 489 votos no Colégio Eleitoral contra 49 de Carter. Um dos poucos estados a votar com ele foi sua Geórgia.


Nobel da Paz

Ao deixar a Presidência, Jimmy Carter manteve a tradição de não se envolver na política partidária, criando o Centro Carter, sua plataforma para promover a defesa dos direitos humanos ao redor do mundo. Além disso, teve papel de destaque em negociações de paz, observações de eleições e na libertação de cidadãos americanos detidos no exterior, como na Coreia do Norte e Nicarágua. Em uma das faces mais visíveis do projeto, o ex-presidente costumava ser visto em ações para construir casas destinadas à população com menor poder aquisitivo — até os seus últimos meses de vida era figura frequente nos canteiros de obras.

Em 2002, o trabalho do Centro Carter foi reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz.

Carter e sua esposa, Rosalyn, que morreu aos 96 anos em 2023 — Foto: AFP

Em seus comentários políticos, ele criticou a decisão de invadir o Iraque, em 2003, dizendo que ela não passava de uma tentativa de derrubar Saddam Hussein por meio de “mentiras”. Nem mesmo seu companheiro de partido, Barack Obama, escapou das críticas, feitas ao uso de drones em conflitos no Afeganistão e no próprio Iraque.

Jimmy Carter era casado com Eleanor Rosalynn Carter desde 1947, com quem teve quatro filhos — mais tarde ganharia oito netos e dois bisnetos. Ao todo, escreveu 32 livros e ensaios, refletindo suas visões políticas, familiares e espirituais.

Fonte: O Globo



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