Enem 2024: o que os resultados apontam sobre a redação


A redação do Enem não avalia apenas a capacidade do domínio da escrita, mas, do mesmo modo, o nível de conhecimento dos jovens


O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não é o fim do túnel para o ingresso na universidade, mas, certamente, é uma imensa oportunidade de se abrirem as portas para aquele curso superior tão sonhado, sobretudo para os estudantes mais desprivilegiados socialmente.

E não só para quem deseja estudar no Brasil, não! O Enem contribui para o ingresso em instituições em Portugal, no Reino Unido, nos Estados Unidos e no Canadá.

É natural, portanto, que a ansiedade dos alunos, professores e familiares se eleve nesse período: antes, durante e após as provas, até seus resultados e as possíveis inscrições no Sisu, Prouni, Fies e em outros programas.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), responsável pela prova, divulgou, na segunda, 13, as notas do exame, compartilhamento seguido de uma coletiva do Ministro da Educação, Camilo Santana, com uma análise preliminar dos resultados.


Observações sobre a redação do Enem

O que é possível observar em relação à redação, parte da prova que correspondente a 25% do total e foco deste artigo?

Apenas 12 estudantes obtiveram nota máxima na redação: dois de Minas Gerais e dois do Rio de Janeiro; e um nos estados de Alagoas, do Ceará, Distrito Federal, de Goiás, do Maranhão, de Pernambuco, do Rio Grade do Norte e de São Paulo.

No Enem do ano anterior, foram 60 casos com a nota máxima. É necessário considerar que o número de alunos que realizaram a prova aumentou de 3,9 milhões para 3,18 milhões.

É evidente que a pontuação máxima na redação não diz tudo sobre o exame, porém demonstra sinais mais claros da rigidez na avaliação.


Nível de dificuldade do tema proposto em 2024 foi regular

É preciso destacar, ainda, que o nível de dificuldade do tema proposto em 2024 foi regular, de fácil compreensão e desenvolvimento: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.

Muito se vem comentando e estudando na escola sobre essas heranças culturais africanas, embora a valorização, de fato, continue sendo uma busca.

Esse aspecto, inclusive, está previsto em um dos Temas Contemporâneos Transversais, constados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): “Multiculturalismo – Diversidade cultural e Educação para a valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras”.

Os projetos e eventos comemorativos nas instituições também têm sido mais frequentes, vide as comemorações do Dia da Consciência Negra (feriado nacional), estimuladas pelo Ministério e pelas Secretarias de Educação.

Tudo isso deveria contribuir, sem dúvida, para uma boa abordagem do tema. Entretanto, apesar disso, houve queda nessas notas mais altas. Isso nos leva a constatar maior rigidez na avaliação do texto pela banca.


Estudante nota mil produziu 40 textos em 2024

Houve apenas uma estudante da rede pública com nota mil. Trata-se de Samille Malta, de 19 anos, de Viçosa, Minas Gerais.

Ela declarou ter produzido 40 textos ao longo de 2024. Não é novidade a desigualdade entre o preparo de um estudante da rede pública e da rede particular.

Nem vamos nos aprofundar nesse mérito aqui, quem sabe em outro artigo. Essas diferenças, obviamente, são um desdobramento das desigualdades sociais e econômicas, presentes desde o processo de colonização do Brasil, com reduções graduais e lentas.

Na esteira das notas máximas, aquelas entre 950 e 980 também caíram. Foram 56 mil em 2023 e 38 mil em 2024.

Apesar de não ser o foco desta reflexão, vale dizer que houve, ainda, uma queda significativa nos resultados das provas de Ciências e Matemática entre os dois últimos anos, embora a média do resultado geral da prova tenha subido discretamente: de 543 para 546.


Um discreto, mas significativo progresso

Se as notas 1000 nas redações reduziram substancialmente, a pontuação média geral dos textos subiu de 645 para 660. Um discreto, mas significativo progresso. Bom sinal!

Os estados com notas mais altas na redação, considerando o patamar de 950 e 1000, foram na ordem: Rio de Janeiro (2.728), São Paulo (3.692), Ceará (2.398), Minas Gerais (4.397) e Bahia (2.099).


Quais as razões, portanto, do rigor na avaliação dos textos e a decepção de muitos alunos com os resultados?

A banca de avaliação das redações foi, de fato, mais criteriosa e mais rigorosa. E o Inep já havia chamado a atenção para esse ponto antes do exame.

Embora as competências sejam as mesmas desde a criação do Enem, no final da década de 1990, a banca de avaliação vem se aperfeiçoando e evitando injustiças e inconsistências.


Importância adquirida pela prova

É preciso considerar também a importância adquirida pela prova para o ingresso em uma instituição de ensino superior.

Um dos motivos, claro para mim, neste primeiro momento pós resultados, é que a banalização dos modelos “prontos”, veiculados por muitos cursinhos preparatórios para os vestibulares, pelas redes sociais, pelas páginas de influenciadores, dispostos a garantir magicamente a tão sonhada nota 1000 “sem a necessidade de o aluno pensar muito e sem esforços”, como se o processo da escrita se desenvolvesse dessa forma.


Necessidade de um repertório sociocultural

A redação do Enem não avalia apenas a capacidade do domínio da escrita, mas, do mesmo modo, o nível de conhecimento e informatividade dos jovens ao longo do ensino básico.

A necessidade de um repertório sociocultural acabou levando muitos estudantes, deficitários dos saberes nesse campo, apelarem para repertórios ditados, decorados, encontrados, facilmente, em longas listas no universo digital. É só entrar no Chat GPT e solicitar um reportório associado a algum tema…

A IA vai lhe oferecer rapidamente um leque de sugestões! Porém, o “conhecimento” precisa ser científico, passível de comprovação.

Além disso, precisa estar coerente com o tema e os demais argumentos e, igualmente importante, estar bem-articulado com o restante do texto.

Do contrário, a redação passa a se apresentar como uma tela cubista ou surrealista, sem a arte de Picasso ou Dalí. Não convence.

A ideia de que basta cumprir cada uma das cinco competências determinadas pelo exame para um excelente resultado é enganosa.

A proposta de encaminhamento para a resolução do problema (competência 5), por exemplo, precisa estar coerente com a tese defendida pelo aluno e correta na sua informatividade e viabilidade.

Apresentar uma informação incorreta no detalhamento (um dos itens da proposta segundo o edital) não irá garantir os 200 pontos tão preciosos nessa competência.

Vou supor um exemplo bem extremo: a ideia de distribuição de pílulas fortificantes à população mais pobre para resolver o problema da fome, convenhamos, tem grandes chances de não convencer ninguém, ainda mais os avaliadores.

O mesmo acontece com as demais competências, incluindo a 4: coesão textual/articulação. Não basta usar uma conjunção entre os parágrafos ou períodos. O articulador precisa ser coerente e preciso em relação aos trechos alinhavados.

Do contrário, o aspecto linguístico pode produzir um desvio de conteúdo grave e pode comprometer toda a redação.

Poderia, evidentemente, me estender nos dados e nas possibilidades de leitura desses números sobre a redação, mas é preferível aguardar maiores detalhamentos por parte do Inep para o desenvolvimento de outras percepções.


E o preparo dos estudantes para a prova?

Por enquanto, acredito ser importante compartilhar essas considerações mais veementes no momento. Para concluir, gostaria ainda de fazer uma ressalva em relação à forma como os estudantes vêm se preparando para a prova de redação.

Não há, de minha parte, nada contra o oferecimento de técnicas e dicas para os jovens até a chegada do Enem e de outras provas. Lembro, no entanto, que a aprendizagem da leitura e da escrita é um processo que se inicia em casa, antes mesmo de a criança ir para a escola; depois, prossegue, de forma mais consistente e continuada na escola. Mas vamos continuar aprendendo.

Diante de um novo tema, com o qual não estamos acostumados; diante de um gênero diferente daqueles que estamos habituados a produzir (uma carta de intenção de trabalho, por exemplo, como uma jovem me solicitou há alguns meses), muito provavelmente, nós nos sentiremos como aquela criança do passado, deparando-se com os primeiros desafios diante da escrita de seu nome: parte de riscos aparentemente aleatórios (não são!), suas garatujas; aprende a registrar algumas letras e, no seu tempo e diante dos estímulos recebidos, passa a escrever o seu nome, encantando-se com a conquista e encantando a todos da casa e da escola.

Para se chegar a uma boa nota na redação do Enem e se viabilizar o alcance dos objetivos do candidato (e é bom destacar que a nota mil não deve se tornar uma obsessão para os jovens e professores), há um longo caminho de vida, uma história com as letras (e não letras), uma vontade de aprender sempre, a começar na infância.

É claro que muito pode e deve ser feito nos últimos anos do ensino médio para essa e outras vitórias, no campo da escrita em especial. Deixo, então, algumas orientações para os estudantes nesse sentido.

Mantenha uma disciplina de leitura e escrita. Esse é um chavão, mas não é possível negá-lo. Nem sempre quem lê encontra facilidade para escrever, mas, certamente, quem escreve com alguma facilidade possui uma bagagem de leitura.


Mantenha o ritmo da escrita de um texto por semana

Nos anos de ensino médio, busque manter o ritmo da escrita de um texto por semana, pelo menos. É cansativo? É “chato”? Pode ser.

Mas logo as dificuldades vão sendo superadas e o texto vai sendo produzido mais rapidamente, com mais fluência, profundidade e originalidade.

E com mais prazer também! Quem não (se) gosta quando lê o seu próprio texto depois de pronto e conclui: “Isso ficou bom!”, “Foi isso o que quis dizer!”.

No processo da escrita, nutra o desejo persistente de superar os problemas apontados, seja pelos familiares e colegas; seja, principalmente, pelos professores (não só os de português!).

O professor é, na maioria dos casos, o primeiro (às vezes, único) leitor do aluno-autor. É ele quem vai apontar dúvidas, desvios, inconsistências, incoerências.

E, se o profissional souber sistematizar e explorar, em suas aulas, os equívocos e inconsistências, individual e coletivamente, todos aprendem. Mesmo que, em alguns momentos, o aluno não concorde muito com a avaliação.


Professor não é O leitor perfeito

O professor é UM leitor, mas não O leitor perfeito, infalível e absolutamente justo. Simplesmente porque isso não existe. Tudo que envolve o ser humano passa pela subjetividade.

Entretanto, é o professor, principalmente o de português/redação, quem tem (ou deve ter) o preparo e a bagagem para uma avaliação mais objetiva, baseada nos critérios de cada situação de escrita. Confie nele! Segure a sua mão!

Procure ser curioso sempre, mantendo a disposição para estar por dentro dos acontecimentos da sua cidade, do seu estado, do país e do mundo.

Procure olhar para você mesmo, para o seu cotidiano… Tenho certeza de que você terá fatos, informações e reflexões muito mais interessantes do que a referência a um pensador nunca lido minimamente.

Valorize o que você sabe e, também, prepare-se para saber sempre mais, enfrentando as lacunas e obstáculos apontados!

Busque a autenticidade para escrever um texto realmente original, especialmente seu. E isso a banca de avaliação do Enem 2024 parece ter valorizado!


Fonte: Folha Vitória



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