Remédios para emagrecer viram alvo de bandidos em nova onda de crimes


Farmacêuticos em São Paulo já sabem exatamente o que os ladrões querem dizer quando pedem ‘medicamentos da geladeira’

Por precaução, o gerente de uma farmácia em SP mantém um facão com bainha de couro atrás do balcãoVictor Moriyama/The New York Times

Por volta das 22h30 de uma sexta-feira no fim de janeiro, o farmacêutico David Fernando estava trabalhando atrás do balcão de uma drogaria em São Paulo quando um homem se aproximou e mostrou uma arma. “Ele exigiu o dinheiro do caixa e os medicamentos da geladeira”, contou Fernando. Os farmacêuticos em São Paulo – a maior cidade do Brasil – já sabem exatamente o que os ladrões querem dizer quando pedem “medicamentos da geladeira”. Eles estão atrás do Ozempic, do Wegovy e do Saxenda, as drogas injetáveis para perda de peso que muitos brasileiros desejam, mas que a maioria não pode pagar. O país é obcecado pela imagem corporal, embora a obesidade esteja em ascensão.

O ladrão fugiu com cinco caixas, cada uma contendo suprimento para um mês e custando entre R$ 700,00 e R$ 1.100,00, enquanto a renda média mensal no país, segundo o IBGE, em 2024, é de R$ 3.225,00.

Embora o assalto à mão armada tenha assustado Fernando, de 36 anos, não foi exatamente uma surpresa. Ele disse que a mesma drogaria foi assaltada pelos mesmos motivos duas vezes no fim de 2024. Agora, para evitar repetições, um guarda de segurança foi colocado do lado de fora do estabelecimento.

A quatro quadras de distância, outra farmácia tomou precauções ainda maiores depois que um policial interrompeu um assalto por Ozempic em agosto, resultando em um tiroteio que deixou uma idosa ferida. Em uma tarde recente, dois guardas armados faziam a vigilância, um à porta da frente e outro perto de um quarto nos fundos onde os medicamentos para perda de peso ficam guardados em um refrigerador.

Há muitas notícias de que os ladrões estão atrás de Ozempic também em outras partes do mundo, incluindo relatos de invasões noturnas a drogarias no estado do Michigan, nos EUA, e em Santiago de Compostela, na Espanha. Mas o Brasil se tornou um dos principais pontos globais para criminosos que cobiçam os medicamentos para perda de peso extremamente populares.

São Paulo, em particular, se tornou um epicentro porque é, incontestavelmente, a cidade mais rica do Brasil, com muitos bairros abastados onde várias farmácias estocam os medicamentos, já que ali há pessoas que podem pagar por eles. Ao mesmo tempo, os ladrões encontram sem dificuldade pessoas em grupos do WhatsApp e do Facebook que querem comprar as drogas.

Os roubos a esses estabelecimentos deixaram os trabalhadores amedrontados, e algumas lojas reduziram seus estoques de medicamentos para perda de peso. “Os assaltos são uma tendência crescente. As drogarias se transformaram em alvos fáceis. Muitas funcionam 24 horas por dia, armazenando o produto em uma geladeira sem segurança efetiva, protegida só pelo farmacêutico”, disse Pedro Ivo Corrêa dos Santos, delegado do Departamento de Investigações Criminais do Estado de São Paulo. Uma análise do The New York Times de um banco de dados do estado de São Paulo mostrou que os assaltos a farmácias em que o Ozempic, o Wegovy ou o Saxenda foram roubados aumentaram significativamente nos últimos três anos. De um único episódio registrado em 2022 – em que quatro caixas de Ozempic foram roubadas de uma farmácia –, o número saltou para 18 assaltos em 2023 e 39 casos em 2024.

Muitas ocorrências não aparecem por conta da subnotificação, e cerca de metade dos assaltos relatados não especificaram quais medicamentos foram levados.

A RD Saúde e o Grupo DPS, duas empresas que possuem redes de drogarias em São Paulo onde foi cometida boa parte dos roubos, se recusaram a comentar. Muitas farmácias independentes declararam que já não mantêm esse tipo de medicamento em estoque. “Quem estoca Ozempic não consegue trabalhar em paz. Quando as pessoas perguntam se temos Ozempic, respondemos: ‘Não, não temos’, e assim não somos roubados”, afirmou Wilson Martins, gerente da Farma o Imperador, drogaria independente na Zona Oeste de São Paulo. Agora, os clientes que querem um dos medicamentos para perda de peso precisam fazer a encomenda pessoalmente e marcar um horário para fazer a retirada. Mas, por precaução, Martins, de 72 anos, mantém um facão com bainha de couro atrás do balcão.

Corrêa dos Santos informou que algumas gangues criminosas têm roubado caminhões que fazem entregas de Ozempic no atacado. No ano passado, a polícia desmantelou uma quadrilha que incluía funcionários de uma empresa de transporte.

Onda de roubos de medicamentos para perda de peso surge em meio ao aumento das vendas desses produtos no BrasilVictor Moriyama/The New York Times

Os produtores e distribuidores de medicamentos devem relatar perdas de drogas resultantes de crimes ou outros motivos à Anvisa, agência brasileira que regula alimentos e remédios. Números divulgados por essa entidade mostram que 4.770 canetas de injeção de Ozempic foram roubadas ou perdidas em 2023, número que disparou para 8.220 em 2024.

A onda de roubos de medicamentos para perda de peso surge em meio ao aumento das vendas desses produtos em um país que reverencia o esforço para alcançar um corpo esculpido, mas onde, como em muitas outras nações, a população, de fato, está engordando. Nas maiores cidades, a porcentagem de adultos considerados obesos aumentou para cerca de 24% em 2023, em comparação com quase 12% em 2006, de acordo com um estudo do Ministério da Saúde.

Várias celebridades brasileiras falaram publicamente sobre o uso de Ozempic ou de medicamentos semelhantes, incluindo os cantores Luiza Possi, Wesley Safadão e Jojo Todynho.

“A onda de roubos começou no mesmo momento em que as redes sociais passaram a falar abertamente sobre o medicamento. Celebridades e influenciadores apareceram exibindo uma perda de peso rápida e inesperada“, afirmou Renata Gonçalves, chefe de um sindicato de farmacêuticos do estado de São Paulo.

Até o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, disse durante sua campanha, em 2024, que “tomou muito Ozempic” e perdeu cerca de 30 quilos. Prometeu disponibilizar o medicamento gratuitamente, acrescentando: “O Rio vai ser uma cidade que não vai ter mais gordinho.”

No Brasil, as vendas de Ozempic cresceram de US$ 27,5 milhões em 2019 para US$ 621,6 milhões em 2023, o último ano com dados completos disponíveis, de acordo com a IQVIA, provedora global de dados de saúde. (O mercado brasileiro ainda é pequeno em comparação com o dos Estados Unidos, onde as vendas totalizaram US$ 30,3 bilhões em 2023.)

Drogas injetáveis para perda de peso são desejadas por muitos brasileiros, mas a maioria não pode pagarVictor Moriyama/The New York Times

Segundo Rodrigo Lima, que trabalha em redes de farmácias há duas décadas e que agora é chefe de operações da Ultrafarma, rede sediada em São Paulo, outros produtos de custo elevado já foram alvos de roubos no passado. “Mas o preço alto do Ozempic desencadeou uma demanda enorme por esses itens, fazendo com que gangues especializadas ficassem de olho nessa fatia do mercado.”

Embora seja relativamente fácil vender e comprar na internet drogas para perda de peso roubadas, os criminosos nem sempre conseguem garantir aos compradores a qualidade dos medicamentos depois que são retirados da refrigeração. Vários farmacêuticos em São Paulo repetidamente enfatizaram que bastam apenas algumas horas em temperatura ambiente para que os remédios se tornem inúteis. “Eles carregam os medicamentos roubados em um carro comum dentro de um saco de lixo. Não se sabe quanto tempo eles os deixam no porta-malas”, disse Andrea Lima, gerente de uma filial da rede Drogaria São Paulo, onde um policial frustrou uma tentativa de assalto em maio passado. Lima contou que a estratégia da Ultrafarma é instalar câmeras de segurança melhores e reduzir o estoque nas lojas da empresa.

Uma loja da Ultrafarma, roubada em 2023, foi ainda mais longe, disse Leandro Rodrigo Santos, gerente dessa unidade. Ela já não estoca o Ozempic, de modo que os clientes precisam fazer uma encomenda para recebê-lo em casa.

Mas até isso é arriscado. Wellington Vieira, chefe de uma divisão da polícia do Rio de Janeiro que investiga crimes relacionados ao consumidor, revelou que a agência recebeu relatos de grupos que encomendam várias caixas de Ozempic para uma casa e fazem uma troca. Quando o entregador chega, duas pessoas atendem a porta. Uma tenta pagar várias vezes com um cartão de crédito inválido, enquanto a outra pega a encomenda e substitui o Ozempic verdadeiro por uma versão falsificada. Quando a compra é finalmente cancelada, o entregador, sem saber, retorna à farmácia trazendo um medicamento falso.

Mas, em breve, os bandidos do Ozempic poderão enfrentar uma força mais poderosa que a polícia: a economia. A patente brasileira da Novo Nordisk para o semaglutida, o princípio ativo do Ozempic e do Wegovy, expira em 2026, e as empresas farmacêuticas estão correndo para obter aprovação para produzir versões genéricas que, certamente, farão com que os preços despenquem.

Mas, enquanto isso não se concretiza, alguns farmacêuticos estão entregando sua proteção a um poder superior. Elis Regina Peixoto gerencia uma farmácia na Zona Leste de São Paulo que até agora não foi atingida. “Em nome de Jesus, não vamos ser roubados”, garantiu ela.

Fonte: R7





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