Com 32 anos e 31 kg: homem mantido em cativeiro por pai e madrasta durante 20 anos era proibido de tomar banho


Vítima provocou incêndio para ser resgatada de imóvel em Connecticut, nos EUA; polícia afirma que ele foi mantido trancado desde os 12 anos

Equipe de resgate atendeu a um incêndio e encontraram a vítima, que teria ficado presa em um pequeno quarto por duas décadas — Foto: Christopher Capozziello/The New York Times

O agente do Corpo de Bombeiros pegou nos braços a figura caída ao chão de uma cozinha e correu em direção à ambulância. Enquanto atravessava uma névoa esfumaçada, um pensamento lhe veio à mente — e ainda permanece: era tão leve que parecia não estar carregando nada. O homem de 32 anos pesava somente 31 quilos. Segundo a polícia, ele havia sido mantido em cativeiro pelo pai e pela madrasta desde os 12 anos, em uma casa na cidade de Waterbury, em Connecticut, nos Estados Unidos.

Enquanto a ambulância corria para o hospital, os paramédicos administravam oxigênio; um deles comentou, instintivamente, sobre o cheiro avassalador. Imediatamente, como se quisesse se desculpar, o paciente falou. Fazia mais de um ano desde que lhe permitiram tomar banho pela última vez, disse ele.

Ele então disse seu nome e contou que tinha 32 anos e que passou a maior parte de sua vida mantido em cativeiro por seu pai e sua madrasta, que o trancavam em seu quarto por cerca de 23 horas por dia.

No hospital, ele continuou sua história. Ele ficou preso por duas décadas, forçado a defecar em jornais e a urinar pela janela do segundo andar. Não via um médico ou dentista há 20 anos. Às vezes, recebia um sanduíche como refeição. Seus dentes estavam tão deteriorados que frequentemente quebravam enquanto ele comia. Ele tinha 1,75 m de altura, mas pesava apenas 31 quilos.

A viagem de ambulância, disse ele, foi a primeira vez que saiu de casa desde os 12 anos.

Então, ele fez uma confissão. Ele foi quem provocou o incêndio do qual foi resgatado. Usou um isqueiro esquecido no bolso de um velho casaco que sua madrasta lhe dera. Se não morresse no fogo, raciocinou, talvez finalmente fosse libertado.

Aquela viagem de ambulância, em 17 de fevereiro, revelou um dos segredos mais chocantes da história de Waterbury. A polícia agora acredita no que o homem disse naquela noite: por 20 anos, um quarto de 2,4 m por 2,7 m no último andar de uma casa degradada foi uma cela de prisão para um menino — agora um homem — visto pela última vez pelo mundo exterior quando ainda estava na quarta série.

Mas muitos na comunidade temeram por sua segurança durante muito tempo.


Sofrimento silencioso e tentativas de ajuda

Anos antes do desaparecimento do menino, seus professores, colegas, vizinhos e o diretor de sua escola primária acreditavam que ele sofria em silêncio. Eles chamaram repetidamente a Polícia de Waterbury e o Departamento de Crianças e Famílias de Connecticut para intervir por uma criança que, segundo eles, estava tão faminta que comia do lixo e roubava a comida dos colegas.

Muitos registros que poderiam documentar essas chamadas foram perdidos, mas os que restam mostram que as autoridades que responderam determinaram que o menino estava bem.

Depois de um tempo, sem evidências concretas de abuso, as ligações cessaram. Na verdade, até o incêndio, a última visita policial registrada à casa do menino na Blake Street foi em 18 de abril de 2005, em resposta a uma denúncia feita pelo próprio pai. Ele chamou os oficiais para reclamar que estava sendo assediado por pessoas que verificavam constantemente o bem-estar de seu filho.

Naquele ano, o menino foi retirado da escola, supostamente para ser educado em casa. Em entrevistas com policiais no mês passado, o homem disse que, por um curto período, recebeu algumas atividades escolares, mas toda a educação formal cessou logo depois.

No final do mês passado, a madrasta do homem, identificada como Kimberly Sullivan, de 57 anos, foi indiciada no Tribunal Superior de Waterbury. Ela foi acusada de sequestro, agressão, crueldade, restrição ilegal e negligência criminosa. Se condenada por todas as acusações, poderá passar o resto da vida na prisão. No mês passado, ela se declarou inocente.

"Ela insiste que não fez nada de errado”, disse seu advogado, Ioannis Kaloidis, em entrevista. Kaloidis culpou o pai biológico da vítima, Kregg Sullivan, que morreu em janeiro do ano passado (a mãe biológica havia renunciado aos seus direitos parentais, o direito de guarda era do pai).

— Eles fazem parecer que Kim Sullivan tomou todas as decisões, que foi ela quem o retirou da escola, que foi ela quem decidiu o que ele comia ou não, que foi ela quem determinou quando ele iria ao médico — acrescentou Kaloidis: — Ela não era a mãe da criança.

Além do enteado, Sullivan também tinha duas filhas mais novas com Kregg Sullivan — Alissa, agora com 29 anos, e Jamie, agora com 27 — que pareciam ter liberdade para entrar e sair de casa quando quisessem.

O homem, que está se recuperando em um centro médico de Connecticut, ainda não fez nenhuma declaração pública. A polícia não divulgou nenhuma foto ou seu nome, pois afirma que ele é vítima de abuso doméstico. Um tutor, cuja identidade não foi divulgada, foi nomeado pelo tribunal para proteger seus interesses. O jornal americano New York Times pediu ao prefeito de Waterbury e ao promotor do estado que encaminhassem pedidos de comentário ao homem, mas não obteve resposta.


'Algo estava errado', diz diretor de escola

Ex-diretor da Escola Primária Barnard, Tom Pannone diz que ainda se lembra da sensação de inquietação que teve com o aluno matriculado em sua escola em 2001. O menino chegava diariamente com uma lancheira plástica suja, disse ele; pelo menos uma vez, Pannone o encontrou no banheiro antes do início das aulas, devorando seu lanche. Foi lá que o viu em um mictório, bebendo a água enquanto dava descarga. Pannone ligou para a madrasta do menino, e, segundo ele, o comportamento parou.

Mas a criança continuava sempre faminta e desarrumada. Durante os cinco anos em que o menino estudou na Barnard Elementary, Pannone disse que fez inúmeras ligações para o Departamento de Crianças e Famílias. Cada vez, disse ele, a resposta era a mesma: a criança estava bem.

“Você sabia que algo estava errado”, disse Pannone em uma entrevista recente.

Registros policiais indicam pelo menos duas chamadas para a casa após o menino ter sido retirado da escola. Uma, em 1º de abril de 2005, foi feita, segundo o relatório policial, por seus colegas de classe, que temiam “que ele tivesse morrido, porque estava fora da escola há muito tempo”. Kimberly Sullivan disse aos policiais que ele estava sendo educado em casa.

Dentro de seu quarto, que era trancado com um ferrolho do lado de fora, o homem lia e relia um punhado de livros, disse à polícia, pesquisando no dicionário palavras que não conhecia. Ele “acabou se educando sozinho”, segundo o depoimento policial.

Ele conseguiu escapar uma vez. Em 2005, quando tinha 12 ou 13 anos, quebrou um pedaço do painel da porta, mas, em vez de fugir da casa, desceu até a cozinha para procurar comida. Quando sua fuga foi descoberta, contou à polícia, a porta de seu quarto foi reforçada com madeira compensada. Ameaças de privação de comida ou violência o impediram de tentar novamente.

Não se sabe em que condições as filhas dos Sullivans foram criadas ou que conhecimento tinham sobre o estado do meio-irmão. Nenhuma delas foi acusada de crime.

Por um tempo, o menino era autorizado a sair do quarto por cerca de uma hora por dia para fazer tarefas domésticas. Só saía ao ar livre para levar o cachorro da família ao quintal para fazer suas necessidades — saídas que duravam cerca de um minuto. Às vezes, quando sua madrasta estava fora, seu pai o deixava sair para assistirem televisão juntos.

Após a morte do pai, contou ele à polícia, seu confinamento tornou-se quase total.

Agora, ele finalmente está livre.


Fonte: O Globo





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