Nesta quarta, 23 de abril, é festejado o dia do santo que protege o Timão e seus fieis há quase 100 anos; historiador explica ao ge como essa relação foi determinante na trajetória do clube
Se você é corintiano e já esteve em algum jogo na Neo Química Arena, sabe que o clube tem uma tradição antes do início de cada partida: a música "Filhos de Jorge" é tocada no sistema de som, as luzes do estádio piscam e um homem de cabelo e barba grandes surge no gramado vestindo uma capa preta e carregando a imagem de São Jorge nos braços. A torcida aplaude, alguns se emocionam.
A cena descrita acima faz parte do "Ritual de São Jorge", e o homem citado é Fernando Wanner, historiador oficial do Corinthians e autointitulado "Guardião de São Jorge". A ideia de levar a imagem ao campo partiu do próprio Fernando, que desde 2017 tem trabalhado para manter viva a tradição do clube com seu santo padroeiro.
– É um ritual de evocação, primeiramente para abençoar todos que estão na arena, porque ganhar ou perder é do jogo. A gente leva o São Jorge para criar uma aura, uma essência corintiana. O esporte é algo a parte, São Jorge não está lá para dar sorte ou azar, ele está lá para simbolizar uma tradição e para homenagear nosso padroeiro – explica o historiador, em entrevista ao ge.
Nesta quarta-feira, 23 de abril, é festejado o Dia de São Jorge. Há quase 100 anos, o Corinthians homenageia o santo católico que, segundo os relatos colhidos no início do século passado, foi quem fez o chamado para ser o padroeiro do clube.
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Fernando Wanner, historiador do Corinthians e "guardião" de São Jorge — Foto: José Manoel Idalgo/ Agência Corinthians
Quem foi São Jorge?
Segundo a Igreja Católica, Jorge nasceu na Capadócia, região que atualmente corresponde ao território da Turquia, no século III. O homem que viria a ser santificado foi um capitão do exército romano que se voltou contra o imperador Diocleciano após a ordem de extermínio dos cristãos.
Depois de se voltar contra o Império, Jorge foi preso e torturado. Ao fim de cada sessão de tortura, o militar reafirmava sua fé, que se mostrou inabalável até o fim de sua vida. A resiliência foi tamanha que serviu de exemplo para outros cristãos.
A imagem do santo passou a ser retratada como a de um cavaleiro matando um dragão, alegoria às lutas internas travadas por Jorge durante a tortura e a sua vitória diante da opressão.
– Ao olhar para São Jorge possamos exemplo dele lutar contra o dragão do mal para sermos vencedores nesta batalha contra os questionamentos da nossa fé – escreveu o cardeal Orani João Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, em artigo publicado no ano passado na Conferência Nacional de Bispos do Brasil.
O "chamado" de São Jorge
A história do clube paulista com o santo católico data do início da década de 1920. Na época, o Conselho Deliberativo do Corinthians precisava tomar a decisão de renovar a concessão pública para o uso do terreno do estádio da Ponte Grande ou procurar um lugar próprio para fincar sua sede na cidade de São Paulo.
Um dos fundadores do clube, o português António Pereira, sugeriu a compra de uma parte do terreno que, na época, era a zona rural da cidade: a Fazenda São Jorge. A ideia foi rejeitada seguidas vezes pelos conselheiros, até Pereira recorrer ao santo que dava nome ao local.
– O António Pereira vislumbrou aqui como o lugar perfeito para o Corinthians. Depois de reuniões entre 1924 e 1925 não tinha cristo que desdobrasse o Conselho, então ele pensou no santo que dava nome ao campo.
– Então, ele teve a brilhante ideia de colocar uma estátua de São Jorge sob a mesa do Conselho e dizer que São Jorge convocava o Corinthians para se tornar o nosso padroeiro e o nosso guia através da história. O clube já tinha uma devoção guerreira, um time da várzea, de operários, de superação. Houve uma comoção muito forte, ninguém tinha feito esse link de que o São Jorge era o padroeiro do Corinthians – relata o historiador do clube.
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Campo da Fazenda São Jorge, a Fazendinha, foi comprado pelo Corinthians em 1926 — Foto: Arquivo Memorial Corinthians
Com os conselheiros convencidos, o presidente da época, Ernesto Cassano, efetuou a compra no dia 18 de agosto de 1926. Para festejar a aquisição da Fazenda, que posteriormente se transformou no Parque São Jorge, uma missa foi celebrada no bairro do Bom Retiro. Daí em diante, o santo católico passou a ser o padroeiro do clube.
Bica, Capela e samba-enredo
Atualmente, a sede social do clube possui diversas referências ao santo. Logo atrás do estádio Alfredo Schurig, popularmente conhecido como Fazendinha por conta do nome original do espaço, há a Bica de São Jorge. De acordo com o imaginário coletivo corintiano, quem bebe da água nunca mais deixará de torcer para o Timão.
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Capela São Jorge fica dentro do terreno do Corinthians e foi consagrada pela Igreja Católica na década de 1990 — Foto: Yago Rudá
No terreno, o clube se orgulha de ter uma capela dedicada exclusivamente ao seu padroeiro e que foi inaugurada em 1967. Mas só desde 1994 é que há missas celebradas aos domingos no local. O técnico Tite, que ficou muito próximo de retornar ao Corinthians nesta semana, tinha por hábito frequentar o local para praticar sua fé.
A história de resiliência de São Jorge acabou sendo abraçada também pela torcida, não ficando limitada apenas aos muros da sede social para dentro.
Em 1976, a Gaviões da Fiel brincou o Carnaval de São Paulo com o samba-enredo “Vai Corinthians”. Com algumas pequenas alterações na letra original, a música é entoada até os dias de hoje nas arquibancadas e relata o sofrimento do torcedor e a fé inabalável na vitória.
– Grande parte dos corintianos são devotos de São Jorge, e mesmo aqueles que não são, na hora do jogo eles creem em São Jorge porque é um símbolo. Mesmo quem é judeu, muçulmano ou evangélico respeita o que significa São Jorge para o Corinthians. É fundamental essa tradição, não só religiosa como simbólica. Temos que nos apegar nisso, no poder que a imagem tem – finaliza Wanner, o homem responsável por levar São Jorge aos torcedores antes do início dos jogos em Itaquera.
Ogum, a inspiração para o símbolo do Corinthians
Fundado exclusivamente por católicos, o Corinthians rapidamente se transformou em um clube ecumênico com a entrada de associados das mais diversas etnias e credos que imigravam a São Paulo no início do século passado.
No Parque São Jorge, ao lado da estátua do santo, há uma imagem de Ogum, o orixá guerreiro cultuado por religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.
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Ogum (à esquerda), São Jorge (ao centro) e Nossa Senhora Aparecida (acima de São Jorge) representam a fé ecumênica na sede social do Corinthians — Foto: Yago Rudá
– Ogum é um guerreiro africano, muito lutador. É um negro alto, forte, destemido. Ele costuma sempre ser representado sem camisa com vestes vermelhas e com uma lança na mão. São Jorge é um santo católico, geralmente representado em cima de um cavalo branco, vestindo uma armadura, segurando uma lança e matando um dragão.
– No sincretismo, comparamos Ogum a São Jorge pela força e pela guerra. Os dois têm muita relação com aquilo que os corintianos veem de si mesmos – relata Pai Salum, presidente da Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo.
Não à toa, o artista plástico Orfeu Domingues Alves Maia, responsável pela modernização do escudo do Corinthians na década de 1980, usou o “Ponto riscado de Ogum” como inspiração para sua criação. O vídeo abaixo guardado pelo torcedor Otávio Bressane, curador da página “Retrato Fiel”, explica a concepção da ideia.
Ainda segundo Pai Salum, o ponto riscado de Ogum é a representação “pura” do orixá. A marcação é utilizada com finalidades de proteção, cura e descarrego de energias negativas.
Fonte: GE