Mãe conta que ficou no meio de tiroteio com filha de 5 anos na volta da creche: 'Só queria chegar viva'


Psicólogos alertam para os impactos causados às crianças pela exposição à violência

Criança que voltava da escola na Ladeira dos Tabajaras, escorada no muro, enquanto policiais cercavam corpo de homem morto em operação — Foto: Márcia Foletto / Agência 

De mochila roxa, uma menina de 7 anos tem os olhos cobertos pela irmã, de 13, as duas encostadas num muro, enquanto policiais com fuzis em punho carregam um corpo em um saco plástico, por um dos becos da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Um menino na mesma faixa etária brinca de se pendurar em um rabecão, o carro da Defesa Civil que acabara de recolher um cadáver. Enquanto isso, um grupo de crianças passa entre policiais armados diante de uma parede, coincidentemente ou não, pichada com a frase “parada obrigatória”. Todos usam uniforme. Era a hora da volta da escola, depois do tiroteio que deixou cinco suspeitos mortos na comunidade na última terça-feira.

Uma moradora que passou minutos de terror ao lado da filha de 5 anos conta que não conseguiu dormir à noite. Assim que o tiroteio começou, a mãe, que estava a caminho de casa, abraçou a criança, em desespero, e se jogou no chão, tentando fazer de seu corpo um escudo. Quando os tiros cessaram, viu o sangue de um dos mortos escorrer até a mochila da filha. Ela e a menina seguiram correndo para casa.

— Ela chorava, e eu também. Só queria chegar viva. Talvez eu tenha protegido ela dos tiros, mas não da violência — disse a mãe, ainda tensa ao lembrar do episódio.


Pós-operação: tentativa de seguir

O dia seguinte à operação foi de medo e silêncio. As creches Tia Zélia, Viver Bem e Tia Sônia Crispiano ficaram fechadas. Clima de luto. Poucas casas de janelas abertas, praças vazias e o comércio quase todo de portas abaixadas. No alto do morro, ainda era possível ver as marcas do que foi um dia de guerra: cápsulas recolhidas por moradores, paredes crivadas de bala, janelas estilhaçadas. O que sobrou foi a tentativa de seguir.

— São cenas muito tristes e simbólicas. Há muito desamparo social, e isso afeta a própria existência das crianças. Expostas, elas ficam submetidas ao poder da morte. As imagens demonstram o medo e um pedido de ajuda — afirma a psicóloga Lurdes Oberg, que atuou por anos em comunidades conflagradas do Rio.

A exposição a situações como esta não acontece sem efeitos. A psicanalista Josenia Veneziani explica que vivências do tipo podem produzir ou piorar problemas de saúde mental, como ansiedade, medo, estresse e outros transtornos. Uma de suas pacientes, que mora no Tabajaras, faltou à sessão de terça por conta dos confrontos.

— Algumas crianças desenvolvem uma insegurança muito grande, por nunca saberem o que vai acontecer. Outras podem reproduzir algum padrão de violência, por não se sentirem respeitadas e tratadas com dignidade. Fora danos no desenvolvimento psíquico, cognitivo e social. E a escola que fecha provoca lacunas no aprendizado — afirma a psicanalista.

Menino com uniforme de escola se pendura em rabecão que retirou corpos em operação na Ladeira dos Tabajaras — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo / 15-04-2025


Deitadas no chão da sala

A paciente é Lúcia (nome fictício), de 11 anos, que trata ansiedade. Ela estava em casa com a mãe no momento da troca de tiros. Passaram horas deitadas no chão da sala, de onde viam um helicóptero dar rasantes com um policial apontando o fuzil para a comunidade. A mãe relata que policiais entraram no imóvel com chave mestra e vasculharam os cômodos.

— Estávamos sozinhas. Minha filha teve uma crise de ansiedade muito forte. Estava gritando, se tremendo, perguntando o que era aquilo. Ela falou: “mamãe, eu vi sangue”. É muito triste, a gente não quer isso para uma criança. A mais velha, de 17 anos, disse que viu corpos no chão — relata a moradora.

A menina faltou à escola e à terapia, ambas em Botafogo.

Em nota, a Polícia Civil afirmou que tem a ouvidoria da instituição para receber reclamações, e que denúncias sobre má conduta de servidores podem ser feitas diretamente para a corregedoria.

Há anos o Tabajaras não vivia um dia de confronto intenso, apesar da forte atuação de traficantes armados na comunidade há muitos anos.

— É realmente complicado quando as crianças não estão expostas só à violência de operações letais, mas também à violência do tráfico — desabafa outra moradora, sem se identificar.

As cenas chocantes registradas na favela pela fotógrafa Márcia Foletto e pelo fotógrafo Fabiano Rocha repercutiram. Antropóloga social e imortal da Academia Brasileira de Letras, Lilia Moritz Schwarcz descreveu uma das imagens como “a cara desse Brasil que infelizmente parece não mudar”, clamando para a não naturalização da violência.

Fonte: O Globo



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